12.2.10

Navegar. Viver.




Ontem trouxe o barco para casa. O leme quebrado tinha conserto, o mastro horizontal, não.
Ainda assim, o vento enfunou as velas e partimos, em pensamento, risco grande de soçobrar.

Havia um rato morto no tanque, já duro, sobre o saco de estopa que um dia guardou livros. Pus ambos no lixo e se foram.

Sonhei a vida inteira com o barco. Ele chegou, enfim. Quebrado. Ainda assim, bonito de ver. Imponente, sobre a prateleira mais alta, augúrio de viagem, outros mares.

Os ratos abandonam o navio.
O capitão naufraga com ele.

O rato está morto.
O barco, quebrado.

No peito, um peso e uma dor.
Nas costas, uma dor.
No coração, uma dor.

Nos olhos, uma estrela.
E um pesar.

Pelo veleiro.
Pelo rato.

-------------------------------------------------------------------------------------

"Não precisa ir muito além dessa estrada
Os ratos não sabem morrer na calçada
É hora de você achar o trem
E não sentir pavor
Dos ratos soltos na casa
Sua casa.
"
(Lô Borges, Trem de doido)

18.1.10

Um dia comum



Quando terminei de ensaiar o samba-enredo, a escola já tinha passado. Isso porque chovia a cântaros - somente porque quis usar a expressão e falar em cântaros, como falar em píncaros, por nada além da sedução dos fonemas, das proparoxítonas - estando trincados os cântaros e a água escorrendo pelas frestas que a super bonder do desejo não conseguiria jamais colar.
Soltei a voz, não na avenida, menos ainda nas estradas, sim sob o chuveiro, ducha de água fria lavando ânimo, desânimo, sono e suores matinais, mezzo-soprano, preguiça completa.
Um samba antipopular, nada original, citações-apropriações do pé à ponta - em se tratando de enredo meio centopéia, meio bicho de sete cabeças, como meia a lua no céu que vi a caminho de casa já bem depois do ensaio, da torrente, do asseio.
Pois, como não dizia antes, tratava o enredo de verdades e mentiras, de atores e atrizes, de maracatus e ararunas, de crenças mortas e fés desaparecidas - que fé demais cheira mal, feito li nos reclames da ICMS ASA NH (leia-se: Igreja da Coleta Monetária pela Salvação das Almas Sebosas e Afins do bairro de Novos Horizontes).
Apocalíptica história em que os loucos abriam portas do hospício e marchavam nas ruas em pas-de-deux, piruetas, continências e reverências, às pedras, árvores e cães danados. Paravam, engatavam a ré e aceleravam até o tabuleiro mais próximo, onde os cavalos pastavam amarrados às suas torres e os reis dormiam seus sonos reais nem se importando com a falta de sentido do jogo-desfile-enredo-revolução.
Ninguém ingeria nada além de café, forte feito o fumo de Abdias, grosso de enrolar no dedo, protesto silente contra as lavagens de espingarda e o chafé de Salete no sanatório geral.

Mas a escola já tinha passado quando terminei de ensaiar.
E chovia e a pia pingava e o pinto piava e nada explicava nada quando parei de cantar e recebi o abraço amoroso do roupão não de seda mas de feltro felpudo marrom que nunca tive como não tive palco nem plateia nem aplauso nem os quis nem deixei de me alegrar.
Olhei então retratos e entrei na máquina do tempo e vi o bolo de chocolate com duas velinhas juntas que formavam 11 e o balcão de azulejo e as prateleiras coloridas e o periquito empalhado de olhos tão vivos que metiam medo e a janela das assombrações dos delírios dos 40 graus das febres das amigdalites da rede do abacateiro.
E vi sentado no batente da bodega o rabequeiro, a voz roufenha, o olhar trocado do desvio e da pinga, o forró rasgado, a obstinação.

Quando voltei tinha ido embora, a bodega fechada, a última dona morta, a rabeca calada, a foto desbotada, os paralelepídos enterrados no asfalto, gringos, prédios, tiroteios, e uma cidade que não reconheci jamais; como epitáfio, um samba-enredo que ninguém queria ouvir, como já não queriam ouvir o rabequeiro, que então se foi para sempre, como se foi a chuva, como se foi a cidade velha, como se foi o som quando caiu o último pingo do chuveiro.

8.1.10

minotauro

A ponta do fio se me desprendeu das mãos sem que eu notasse e lá me fui, barata tonta, bêbado aos tropeços, que quanto mais avançava mais estava em lugar nenhum, menos se aproximando da chegada, da saída.
Não via nada além das paredes, esquinas, corredores, não via ninguém, não via rabiscos nos muros, grafitos, sinais, nada além de ossos humanos, de animais, em nada pensando senão sair de lá quanto antes.
Parava, deitava no chão, sujo, ofegava, encostava o dorso no cimento morto, até voltar o rugido, o zumbido, os passos, recomeçar a perseguição, a fuga.
Foi assim o tempo de uma valsa. Uma valsa de mil tempos, pés descalços e feridos demais para dançar.

Então choveu. Forte. Trovejou. Relâmpagos riscaram formas luminosas no céu pesado, a água arrancando pedras do chão, levando embora a poeira dos pesadelos, trazendo, fino, invisível, quase, o fio, a ponta, em que me agarrei, me amarrei, e fui puxando, seguindo, o fio condutor, a chave da porta de saída.

Não havia penas, não havia cera, não havia mar, não haviam asas, só o fio. E por um fio, continuei, avançando, dobrando as esquinas, perdendo corredores, os ruídos ameaçadores se afastando, se afastando, sumindo, e não mais paredes.

E vi o campo aberto e o sol e o prado e o verde e a liberdade e o cansaço tão grande tão grande e não parecia nada e a força vinda de não sei onde movendo as pernas em desabalada corrida e o fim do cárcere do cativeiro da jaula da gaiola. Do labirinto que em segundos ruiu.

E o azul do céu.
--------------------------------------------------------------------------------------

6.1.10

verano

Diviso as luzes do navio desde o porto. É noite. O caderno de arame não tem luzes. Nada escrito. Corro pela orla a ver se encontro a ponte. Corro até o amanhecer. Exausta, adormeço sobre um banco de areia.
Acordo em minha cama.
Vejo que sonhei.
Que um moço feiticeiro me visitou em sonho.

Ele cantou canções. Soprou-me um cisco no olho. Acariciou-me os cabelos.
Vinha de longe, de outro tempo. Falou de viagens. De gentes. De mundos. De universos. Um moço feiticeiro.
Era pintor.
Mostrou-me suas telas.
Tinha dedos longos.
Mãos bonitas.
Eu não lhe disse isso, das mãos.
Eu não lhe disse muitas coisas.
Outras, não deveria ter dito.
Ele ficou algum tempo.
Falou de amor. De dor. De rimas.
Depois partiu.
Foi bonito, o sonho.

A gente sempre acorda um dia, enquanto vida tem.
Meu despertar foi brusco.
Sinto ainda no rosto o sal.
O moço - deve ter encontrado a ponte. Ou embarcado no navio luminoso.
Meu caderno de arame ficou sobre a mesa.
Sem luzes.
Nem palavras.

--------------------------------------------------------------------------------------

23.12.09

A estrada



Era essa a estrada, era sim. Passei por ela há anos, bem me lembro. Mas havia um ingazeiro de galhos debruçados sobre o rio.

O rio, era esse, sim. Mas havia água em seu leito.

Eram essas as pedras, não se moveram, até onde a vista e a memória ainda podem afirmar. Mais claras? Mais escuras?

Eu passava por aqui, e descansava à sombra da tarde vermelha. E sonhava nuvens e contava pássaros, e catava seixos, e olhava passarem as cabras e cabritinhos e bodes e todo o rebanho - os rebanhos.

Era essa a estrada, hoje vazia, sem o ingazeiro, seco o leito do rio.
Era essa a estrada que sorria, antes.
Era essa a estrada, agora árida, agora deserta, agora parecendo sem fim.

Foi essa a estrada que deixei.

É a ela que hoje volto, sementes nos bolsos, dança da chuva nos pés.
É nela que descubro, tanto tempo depois, novos atalhos, veredas, encruzilhadas.
Poucos pássaros, poucas nuvens, água nenhuma.
E o sol. E o calor.
Nela plantarei rios, casas, gentes e quintais.
Por ela continuarei a peregrinação, no estio, na aridez.
Nas cheias, no tempo bom.
Na estrada onde fui. Onde sou.
Onde um dia plantei.
De onde um dia parti.
Onde hoje começo nova semeadura.

-------------------------------------------------------------------------------------------

Se esse rumo assim foi feito, sem apuro e sem destino
Saio fora desse leito, desafio e desafino
Mudo a sorte do meu canto, mudo o Norte dessa estrada
Em meu povo não há santo, não há força, não há forte
Não há morte, não há nada que me faça sofrer tanto

(Sidney Miller - A estrada e o violeiro)

21.11.09

Passageiros




Em seus olhos sorridentes, miúdos, meninos, a clara manhã.
A cachoeira cristalizada, queda d’água adiada a jamais.

Chão retirado de sob os pés, fardos de sobre os ombros jogados à terra.

Quase levitar, nenhuma dor, notas no piano.

O encontro e a pele encrespada, pelos eriçados, arrepios. Voz suave, ciciar de lençóis em dedos entrelaçados. Desejo e o corpo ardendo, o estreitamento, um em uma, um a um.

O riso no portão, até breve, o giro do mundo suspenso. Mais ninguém, mais nada.

Espera. Silêncio. Ausência.

Sem adeuses. Sem promessas. Sem reencontro. Sem então.

O tempo sem fim e a seca murchando pétalas e sonhos. E contos.

Não saímos à noite a catar estrelas,
que nem chegamos a existir.


-------------------------------------------------------------------------------------------

17.11.09

Férias




Não era mais noite e o despertador não tocou e a manhã já tinha se esvaído em sono em nada em vão quando o cancão chamou de cima das ramadas altas e nunca antes na história desse lugar tinha vindo um cancão em visita, presságio, passagem, chafurdando a placidez do tempo, anunciando avalanches.
Aí acendi a luz e limpei a pia e fiz o café e morri de preguiça e de sono e de tédio das noites bourbon 33, carbono 14, e de ansiedade pelas quase férias, pela malemolência permitida concedida consentida, o cheiro de maresia futura chamando pra logo, pra ontem, pra já.
Foi quando me dei conta da urgência das malas bagagens escolhas e de não saber quem ou o que levar junto.
Nem motorista nem amigos nem mala com-sem alça nem lembranças nem memórias nem mágoas nem desatinos.
Uns livros e uns papéis e um computador e um transporte e uns lápis, de cor, cinzentos e uns projetos e uns desejos e umas idéias - esses sim.
Na encruzilhada, nem dúvida nem despacho. Espera, lamento, hesitação nenhuma.

Nem sei ainda pr'aonde ir nem me preocupo, que a estrada diz, que o nariz aponta, que o gato zombeteiro não me confunde mais.
E nem quero atender telefone, escrever carta, e-mail, sms, cartão, telegrafar, dar sinal, de vida, de fumaça, sonoro.
Daí que me levo, me vou, me fico, me volto depois, um dia, uma hora dessas qualquer, qualquer hora, hora boa, fim de tarde, manhã cedinho.
O cancão já se foi, graúdo, barulhento, esquisito, bonito inda assim e o café cheira no fogo e o corpo acorda e a bagagem pronta acena aponta e vou indo, vou indo, vou indo.
Agora, indo.
Na volta, bem.
Muito bem, obrigada.

----------------------------------------------------------------------------------------

2.11.09

Depois do banho




A última tentativa depois do banho de imersão.
No barril de madeira, loção e óleos. Sal grosso e aromático. Contra olho gordo, magro, em forma.
Dali ao mar, uns passos. E a nuvem passando sem querer virar água. Sem lava-pés, lava-jato, lava alma.
Um barco partindo. Um barco chegando. Ondas indo, vindo, o ensinamento de Netuno. De Iemanjá. Ondas e silêncios.
Depois do banho de imersão, não mais palavras. Não mais discurso. Não mais intenções. Nem más. Nem boas.
Camino nuevo - duas mãos, duas vias.
Feito de silêncios. Segredos. Mistérios.

--------------------------------------------------------------------------------------

"o desastre tirou o trem dos trilhos
e o brilho frio das estrelas
ilumina o metal dos risos
"
(última mentira - Capinam)

30.10.09

Enquanto a noite cai




Enquanto a noite cai me sinto ausente. Não estou onde estou, estou além. Longe do mar, longe do lugar onde nasci. Tem alguém em casa, além de mim. Mas não estou em casa, nem ele também. Meu corpo físico, apenas, estirado no sofá vermelho. Sua presença na sala. Seu corpo longe.
Próximos. Distantes. Eu, que estou aqui, mas não estou.
Ele, que não está aqui, mas está.

Penso nos seus olhos negros, no seu olhar de cachorro ladrão, esquivo, de esguelha, como se sempre em falta, como se sempre prestes a ser pego em falta, como se sempre escondido, escondendo.
Penso em suas mãos firmes. Em suas mãos trêmulas. Em suas mãos magras. Em suas mãos. Nas linhas da sua mão, que eu não soube ler, como não soube ler as linhas das minhas mãos, firmes, magras, longas.
Penso em sua inquietação. Em sua quietude. No seu riso, escasso. No seu siso, farto. Em sua voz cantando, calando, dizendo, mentindo.

Enquanto a noite cai penso no navio em que não embarquei. Sem lembrar direito o que me fez ficar.

Penso no amor maltratado, amassado, pisoteado, cuspido, quebrado, jogado no lixo de onde o retirei com a incumbência vã da reciclagem.

Meus amigos estão viajando. Meus amigos estão trabalhando. Eu, que tanto trabalhei, descanso agora enquanto a tarde perde as derradeiras luzes naturais. Meio a um fantasma que dá voltas pela sala. À interminável luta contra os cupins. À sede de alegria. De vinho. De verdade.

Enquanto a noite se instala implacável ao redor de tudo, abro a geladeira quase vazia. Água, o eco e um doce, que de bom grado daria a quem dissesse onde a alegria foi morar.

-----------------------------------------------------------------------------------------


21.10.09

as tripas e o coração



Voltei para casa porque precisava dizer, que há muito estava muda. Sofri uma intervenção cirúrgica. Um belo dia amanheceu, bocejei, e quando dei por mim, me havia entrado na boca um alicate, que de um sopapo me extraiu as tripas pela mesma boca - a de onde sai o mal.
Ardia-me a garganta, um pouco, e só. O fato é que por dentro, abaixo do estômago, estava vazia. Nada mais podia digerir dali por diante. Nem sentir, que nesse arranque, saiu-me junto o coração. Este, já de antes – e a bem da sobrevivência – devidamente convertido em tripas.
O vazio perdurou, e veio a consciência, da perda, e o luto, e a dor, ou e a dor, e o luto - nem sei que ordem usar.
Durante o luto, perdi a voz.

Andando na rua me veio à lembrança uma história:

Era para ser um encontro, leve e casual.
Era para ser uma dança, uma dança apenas. E no bailado, rodopiaram tanto que perderam o eixo. A direção. E o ritmo, tornado veloz, veloz. E entraram em órbita. E nesse rodopio a terra foi ficando longe, longe, um ponto azul, até sumir de vista. E seguiram rodando no espaço, feito pião, cruzando constelações, objetos luminosos, passando ao largo dos buracos negros. E foram muitos. E foram um.
Até que um asteróide os desviou da órbita e regressaram à terra, e se esborracharam, quase, no impacto, de encontro ao solo outra vez.
Eram dois e vasculhavam o chão, catando pedaços de si. Eram dois, e meio recompostos, voltaram ao baile. E dançaram outra dança, e mais e mais danças, em rodopio lento e uniforme. Não leve. Ou casual.
Eram dois e embora juntos, não se encontrariam mais.

Com essa lembrança, a voz me voltou. Assim, sem aviso prévio, sem se anunciar. Chegou e pronto, me vi tagarela, em frente à igreja, no banco da praça, meio aos taxistas e desocupados da hora.
Ainda um vazio, ainda a procura pelas tripas, pelo coração.

Quis vir imediatamente pra casa - precisava dizer.
Que dizer ajuda a esquecer. E esquecer, a reencontrar.

-----------------------------------------------------------------------------------------

[...]já que gosto tanto de ler, eu mesmo me arrisco a escrever livros irrelevantes que ninguém quer ler. Mas continuo fazendo deste ofício o motivo de minha existência. Porque escrever é como amar[...]
(Carlos de Souza, aqui)

16.10.09

mosaicos



Vi meio nariz no chão. Um pedaço de olho. Mechas de cabelo.
Não, não, nenhum episódio macabro.
Reflexos, somente, em cacos de espelho.
Tentei formar um rosto inteiro, super bonder da recomposição.
Em vão. Espelhos quebrados jamais mostram a mesma imagem.



---------------------------------------------------------------------------------------

noturno




Pelo ar, sobrevoa a cidade. Noturno. Veloz. Cruzando, roçando, ao passar, lobos, vampiros, morcegos, criaturas da escuridão, habitantes do seu pavor.
Um tocou seu braço. Uma bebeu seus olhos.
À frente, no teto do mais alto edifício, repousa em espera, anjo maldito, banido de céu e terra.
Encerrado no cofre o revólver, balas de prata. E onde o segredo em papel amarelo?
Segredo. Existência inteira em segredos. Inconfessáveis. Dupla vida, tripla, quádrupla. Quantas vidas? Quantos seres em um?
Manhãs adormecidas anos a fio, dias sem sol. E o brilho na noite. E o poder. E o entorpecimento.

Uma mulher solar. Uma mulher abissal. Uma mulher visceral.
Uma mulher e sua sede infinita. De devassar. Revirar. Remexer. Revolver. Penetrar.

E o interdito.
As páginas trancafiadas, os códigos sem honra, segredos a sete chaves. Sem partilha. Seu prazer. Seu poder. Sua solidão. De mais ninguém.

Um rio transbordando - fobia de águas profundas. Os arrecifes. O vôo.
A entrada, proibida.
As portas cerradas.
Ocultos a alma o prazer o remorso a culpa a raiva a dor. E o brilho.
Noturno.
Desvarios o assaltam no vôo. Na travessia do túnel. Na cidade.
Na noite.
Na noite em que assiste inebriado o desfile das fêmeas no cio.
Sem ver, na outra direção, uma mulher partir.

12.10.09

homens e lagartos



I - A inquilina

Tenho um sofá. Na varanda. Vermelho, verde e laranja.
Uma lagartixa jurássica mora nele.
Parece um lagarto. Um dragão de Komodo miniatura.
Move uma ação de usucapião. Não contesto. Ela ganha o sofá. Ficam os dois a me fazer companhia. Rio do seu ciúme quando sento nas almofadas e espicha a cabeça com jeito de “como ousa?”. Inútil mostrar a nota fiscal. É dela e ponto.

II - Os comuns

Sirenes no meio da noite, madrugada, vozes do lado de lá. Bigornas vesperais, noturnas, estridentes, de ira, deboche, despeito. Ferros retorcidos, batalhas perdidas. Ouço surpresa. Atônita. Querendo ignorar quando insistem.
Os maus são capazes de muito. De quanto são capazes todas as pessoas?

III - Os bons

Ela me abriu a porta de sua sala quente e eu sentia frio.
Não me conhecia. Deu-me de comer e de beber. Pão e vinho. Cobertores. Leito. Calor. Abrigo.

Ele era clandestino. Eu não. Ele trabalhava. Eu não.
Sem dinheiro e sem amigos. Deu-me um trabalho. Clandestino. Nada grave. Pratos. Bandejas. Pessoas. Indo e vindo, braços doídos, cinco da tarde às três da manhã, atropelando palavras, derramando copos em capotões, trocando pratos por guardanapos, sal por pimenta.
Em terra estranha.


O rabo se perde. E renasce.

Os ódios não vingam. E se vão sem deixar rastros.

A lembrança da partilha permanece. Amizade. Amor.

Onde a fronteira, a linha, a divisa, tênue, entre bem e mal em cada um?
Que são um e outro?

Às vezes sinto saudades dos 80.

Às vezes, descrença.

Às vezes, esperança.

Enquanto discordamos encontro seu nome entre os terceiros.

---------------------------------------------------------------------------------------

"Você verá que é mesmo assim, que a história não tem fim
Continua sempre que você responde sim à sua imaginação
A arte de sorrir cada vez que o mundo diz não
"
(Brincar de Viver - Guilherme Arantes)

6.10.09

Contrição



Havia um cão rosnando, um cão amarelo, feroz, acorrentado. Havia um homem falando ao telefone, nariz aquilino, olhos profundos. Havia o medo do cão, o medo do homem, embora a voz, que acalmava, nem dois pra lá nem pra cá. Silêncios intercalando revelações, um homem de além-mar, roupa branca, fala estrangeira.
Quis ir consigo, e o portão fechado. Quis ir consigo e o cão se soltou. Quis ir consigo e esqueceu. Ficou na costa, entoando cantos de trabalho. Não se despediram. Desapareceu.

Havia outro cão, uma cadela, que não era feroz.
E um longo corredor.

E a campainha tocando, interrompendo sono e sonho.

Mais um dia, e acordei cansada. Mais um dia, e tanto a fazer.

Então vim aqui, que vi aberta a porta da Igreja, e subi os batentes, e entrei, reverente, e pensei que, Senhor, aqui venho, que não sou digna que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei salva (Mt.8,5-11). Então pedi proteção. Sabedoria. Clareza. Discernimento. Então agradeci.

Preparo a viagem, as malas, estudo o mapa de navegação. Falta pouco tempo para lançar o barco ao mar. Para encontrar as perguntas, que respostas não há.
Falta pouco tempo para chegar à ilha, onde estão os coqueiros, onde está o baú, onde estão os tesouros, onde está a menina adormecida que um dia fui.
Falta pouco tempo para chegar à ilha, onde inteira estarei até poder regressar.

---------------------------------------------------------------------------------------

"Pra que sofrer com despedida,
se quem parte não leva
nem o sol, nem as trevas
E quem fica não se esquece
tudo o que sonhou?
"
(Rita Lee-Paulo Coelho; Cartão Postal)

2.10.09

O relógio

São treze horas, a reforma proposta não se deu. A máquina de costura os panos dobrados os carretéis coloridos os jovens delinquentes o presidente deposto.
São treze horas a tarde nasce queimando miolos suores mediterrâneos canícula incipiente.
O ponteiro do relógio quebrado marca avisa indica, são treze horas.
Eram treze horas quando o diagnóstico ficou pronto: sociopatia, fragmentação, inteira irresponsabilidade consigo com o mundo com o próximo e o distante.
Ninguém comprou presentes enviou cartões felicitou amigos em seus cumpleaños, birthdays, aniversários. Ninguém juntou os trapos arrumou a mala entregou a chave o plano o projétil não disparado.
Eram treze horas o papel de parede os nus enchendo o teto a cama desfeita as peças no chão o amor naufragado o ponteiro quebrado o amargo o sal o gozo a raiva a dor.
Dando voltas no almoxarifado, onde está o martelo, onde está a britadeira, onde está a chave a chave que abre todas as portas a porta do inferno do sono do paraíso.

Passou o caminhão do lixo, os caminhões esmagam pessoas trituram dejetos percorrem as cidades do planeta freio buzina derrapagem partida chegada.
O caminhão do lixo triturou o que restou das engrenagens do ponteiro do vidro do relógio o que deixou o martelo.

Tenho um amigo, ele me disse, ele pensou, ele escreveu, eu repito. Amanhã falo de flores, amanhã, de primavera.


*****************************************************************************************