30.10.09

Enquanto a noite cai




Enquanto a noite cai me sinto ausente. Não estou onde estou, estou além. Longe do mar, longe do lugar onde nasci. Tem alguém em casa, além de mim. Mas não estou em casa, nem ele também. Meu corpo físico, apenas, estirado no sofá vermelho. Sua presença na sala. Seu corpo longe.
Próximos. Distantes. Eu, que estou aqui, mas não estou.
Ele, que não está aqui, mas está.

Penso nos seus olhos negros, no seu olhar de cachorro ladrão, esquivo, de esguelha, como se sempre em falta, como se sempre prestes a ser pego em falta, como se sempre escondido, escondendo.
Penso em suas mãos firmes. Em suas mãos trêmulas. Em suas mãos magras. Em suas mãos. Nas linhas da sua mão, que eu não soube ler, como não soube ler as linhas das minhas mãos, firmes, magras, longas.
Penso em sua inquietação. Em sua quietude. No seu riso, escasso. No seu siso, farto. Em sua voz cantando, calando, dizendo, mentindo.

Enquanto a noite cai penso no navio em que não embarquei. Sem lembrar direito o que me fez ficar.

Penso no amor maltratado, amassado, pisoteado, cuspido, quebrado, jogado no lixo de onde o retirei com a incumbência vã da reciclagem.

Meus amigos estão viajando. Meus amigos estão trabalhando. Eu, que tanto trabalhei, descanso agora enquanto a tarde perde as derradeiras luzes naturais. Meio a um fantasma que dá voltas pela sala. À interminável luta contra os cupins. À sede de alegria. De vinho. De verdade.

Enquanto a noite se instala implacável ao redor de tudo, abro a geladeira quase vazia. Água, o eco e um doce, que de bom grado daria a quem dissesse onde a alegria foi morar.

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21.10.09

as tripas e o coração



Voltei para casa porque precisava dizer, que há muito estava muda. Sofri uma intervenção cirúrgica. Um belo dia amanheceu, bocejei, e quando dei por mim, me havia entrado na boca um alicate, que de um sopapo me extraiu as tripas pela mesma boca - a de onde sai o mal.
Ardia-me a garganta, um pouco, e só. O fato é que por dentro, abaixo do estômago, estava vazia. Nada mais podia digerir dali por diante. Nem sentir, que nesse arranque, saiu-me junto o coração. Este, já de antes – e a bem da sobrevivência – devidamente convertido em tripas.
O vazio perdurou, e veio a consciência, da perda, e o luto, e a dor, ou e a dor, e o luto - nem sei que ordem usar.
Durante o luto, perdi a voz.

Andando na rua me veio à lembrança uma história:

Era para ser um encontro, leve e casual.
Era para ser uma dança, uma dança apenas. E no bailado, rodopiaram tanto que perderam o eixo. A direção. E o ritmo, tornado veloz, veloz. E entraram em órbita. E nesse rodopio a terra foi ficando longe, longe, um ponto azul, até sumir de vista. E seguiram rodando no espaço, feito pião, cruzando constelações, objetos luminosos, passando ao largo dos buracos negros. E foram muitos. E foram um.
Até que um asteróide os desviou da órbita e regressaram à terra, e se esborracharam, quase, no impacto, de encontro ao solo outra vez.
Eram dois e vasculhavam o chão, catando pedaços de si. Eram dois, e meio recompostos, voltaram ao baile. E dançaram outra dança, e mais e mais danças, em rodopio lento e uniforme. Não leve. Ou casual.
Eram dois e embora juntos, não se encontrariam mais.

Com essa lembrança, a voz me voltou. Assim, sem aviso prévio, sem se anunciar. Chegou e pronto, me vi tagarela, em frente à igreja, no banco da praça, meio aos taxistas e desocupados da hora.
Ainda um vazio, ainda a procura pelas tripas, pelo coração.

Quis vir imediatamente pra casa - precisava dizer.
Que dizer ajuda a esquecer. E esquecer, a reencontrar.

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[...]já que gosto tanto de ler, eu mesmo me arrisco a escrever livros irrelevantes que ninguém quer ler. Mas continuo fazendo deste ofício o motivo de minha existência. Porque escrever é como amar[...]
(Carlos de Souza, aqui)

16.10.09

mosaicos



Vi meio nariz no chão. Um pedaço de olho. Mechas de cabelo.
Não, não, nenhum episódio macabro.
Reflexos, somente, em cacos de espelho.
Tentei formar um rosto inteiro, super bonder da recomposição.
Em vão. Espelhos quebrados jamais mostram a mesma imagem.



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noturno




Pelo ar, sobrevoa a cidade. Noturno. Veloz. Cruzando, roçando, ao passar, lobos, vampiros, morcegos, criaturas da escuridão, habitantes do seu pavor.
Um tocou seu braço. Uma bebeu seus olhos.
À frente, no teto do mais alto edifício, repousa em espera, anjo maldito, banido de céu e terra.
Encerrado no cofre o revólver, balas de prata. E onde o segredo em papel amarelo?
Segredo. Existência inteira em segredos. Inconfessáveis. Dupla vida, tripla, quádrupla. Quantas vidas? Quantos seres em um?
Manhãs adormecidas anos a fio, dias sem sol. E o brilho na noite. E o poder. E o entorpecimento.

Uma mulher solar. Uma mulher abissal. Uma mulher visceral.
Uma mulher e sua sede infinita. De devassar. Revirar. Remexer. Revolver. Penetrar.

E o interdito.
As páginas trancafiadas, os códigos sem honra, segredos a sete chaves. Sem partilha. Seu prazer. Seu poder. Sua solidão. De mais ninguém.

Um rio transbordando - fobia de águas profundas. Os arrecifes. O vôo.
A entrada, proibida.
As portas cerradas.
Ocultos a alma o prazer o remorso a culpa a raiva a dor. E o brilho.
Noturno.
Desvarios o assaltam no vôo. Na travessia do túnel. Na cidade.
Na noite.
Na noite em que assiste inebriado o desfile das fêmeas no cio.
Sem ver, na outra direção, uma mulher partir.

12.10.09

homens e lagartos



I - A inquilina

Tenho um sofá. Na varanda. Vermelho, verde e laranja.
Uma lagartixa jurássica mora nele.
Parece um lagarto. Um dragão de Komodo miniatura.
Move uma ação de usucapião. Não contesto. Ela ganha o sofá. Ficam os dois a me fazer companhia. Rio do seu ciúme quando sento nas almofadas e espicha a cabeça com jeito de “como ousa?”. Inútil mostrar a nota fiscal. É dela e ponto.

II - Os comuns

Sirenes no meio da noite, madrugada, vozes do lado de lá. Bigornas vesperais, noturnas, estridentes, de ira, deboche, despeito. Ferros retorcidos, batalhas perdidas. Ouço surpresa. Atônita. Querendo ignorar quando insistem.
Os maus são capazes de muito. De quanto são capazes todas as pessoas?

III - Os bons

Ela me abriu a porta de sua sala quente e eu sentia frio.
Não me conhecia. Deu-me de comer e de beber. Pão e vinho. Cobertores. Leito. Calor. Abrigo.

Ele era clandestino. Eu não. Ele trabalhava. Eu não.
Sem dinheiro e sem amigos. Deu-me um trabalho. Clandestino. Nada grave. Pratos. Bandejas. Pessoas. Indo e vindo, braços doídos, cinco da tarde às três da manhã, atropelando palavras, derramando copos em capotões, trocando pratos por guardanapos, sal por pimenta.
Em terra estranha.


O rabo se perde. E renasce.

Os ódios não vingam. E se vão sem deixar rastros.

A lembrança da partilha permanece. Amizade. Amor.

Onde a fronteira, a linha, a divisa, tênue, entre bem e mal em cada um?
Que são um e outro?

Às vezes sinto saudades dos 80.

Às vezes, descrença.

Às vezes, esperança.

Enquanto discordamos encontro seu nome entre os terceiros.

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"Você verá que é mesmo assim, que a história não tem fim
Continua sempre que você responde sim à sua imaginação
A arte de sorrir cada vez que o mundo diz não
"
(Brincar de Viver - Guilherme Arantes)

6.10.09

Contrição



Havia um cão rosnando, um cão amarelo, feroz, acorrentado. Havia um homem falando ao telefone, nariz aquilino, olhos profundos. Havia o medo do cão, o medo do homem, embora a voz, que acalmava, nem dois pra lá nem pra cá. Silêncios intercalando revelações, um homem de além-mar, roupa branca, fala estrangeira.
Quis ir consigo, e o portão fechado. Quis ir consigo e o cão se soltou. Quis ir consigo e esqueceu. Ficou na costa, entoando cantos de trabalho. Não se despediram. Desapareceu.

Havia outro cão, uma cadela, que não era feroz.
E um longo corredor.

E a campainha tocando, interrompendo sono e sonho.

Mais um dia, e acordei cansada. Mais um dia, e tanto a fazer.

Então vim aqui, que vi aberta a porta da Igreja, e subi os batentes, e entrei, reverente, e pensei que, Senhor, aqui venho, que não sou digna que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei salva (Mt.8,5-11). Então pedi proteção. Sabedoria. Clareza. Discernimento. Então agradeci.

Preparo a viagem, as malas, estudo o mapa de navegação. Falta pouco tempo para lançar o barco ao mar. Para encontrar as perguntas, que respostas não há.
Falta pouco tempo para chegar à ilha, onde estão os coqueiros, onde está o baú, onde estão os tesouros, onde está a menina adormecida que um dia fui.
Falta pouco tempo para chegar à ilha, onde inteira estarei até poder regressar.

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"Pra que sofrer com despedida,
se quem parte não leva
nem o sol, nem as trevas
E quem fica não se esquece
tudo o que sonhou?
"
(Rita Lee-Paulo Coelho; Cartão Postal)

2.10.09

O relógio

São treze horas, a reforma proposta não se deu. A máquina de costura os panos dobrados os carretéis coloridos os jovens delinquentes o presidente deposto.
São treze horas a tarde nasce queimando miolos suores mediterrâneos canícula incipiente.
O ponteiro do relógio quebrado marca avisa indica, são treze horas.
Eram treze horas quando o diagnóstico ficou pronto: sociopatia, fragmentação, inteira irresponsabilidade consigo com o mundo com o próximo e o distante.
Ninguém comprou presentes enviou cartões felicitou amigos em seus cumpleaños, birthdays, aniversários. Ninguém juntou os trapos arrumou a mala entregou a chave o plano o projétil não disparado.
Eram treze horas o papel de parede os nus enchendo o teto a cama desfeita as peças no chão o amor naufragado o ponteiro quebrado o amargo o sal o gozo a raiva a dor.
Dando voltas no almoxarifado, onde está o martelo, onde está a britadeira, onde está a chave a chave que abre todas as portas a porta do inferno do sono do paraíso.

Passou o caminhão do lixo, os caminhões esmagam pessoas trituram dejetos percorrem as cidades do planeta freio buzina derrapagem partida chegada.
O caminhão do lixo triturou o que restou das engrenagens do ponteiro do vidro do relógio o que deixou o martelo.

Tenho um amigo, ele me disse, ele pensou, ele escreveu, eu repito. Amanhã falo de flores, amanhã, de primavera.


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