25.8.09

Votos

Hoje eu queria mandar você ir pro inferno. Sem passaporte. Sem salva-vidas. Sem remo. Sem uma pataca.

Você ficaria na porta, olhando o fogo depois do rio, sem poder entrar. Sem como pagar a travessia, o barqueiro tosco, sem poder voltar.

Eu queria mesmo estar na terra, acima do inferno, pisando o chão sobre sua cabeça. Recalcando sua inércia.

Hoje eu queria varrer o seu quarto e arrastar seus documentos junto com a poeira até o lixão. Seu registro geral sumindo, sua foto de pessoa física se derretendo no lodaçal.

Hoje eu queria mesmo era você encerrado eternamente no Hades. Você, que tem medo dos seus irmãos. Você que ladra e não morde. Você, que o que diz não se escreve.
Eu queria.

Hoje eu queria não ter memória.
Eu queria viver em outro planeta.
Eu queria ser outra pessoa.

Hoje eu queria, por um momento,
que o inferno não fosse aqui.

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E pode o nosso teto, a Lapa, o Rio desabar
Pode ser
Que passe o nosso tempo
Como qualquer primavera
espera, me espera, eu vou voltar

(Palavra de Mulher, Chico Buarque)

24.8.09

Agosto



Agosto é um mês estranho.
Por mal afamado, que quando desgraça acontece nos outros, ninguém dá fé.
Pela rima e pelo dito: mês de desgosto - como se desgostos nos outros não houvessem.
Pra alinhavar e segundo os astrólogos - categoria démodé -, inferno astral dos setembrinos.

Eu, setembrina, quis conciliar em agosto.
Estava com cem quilos. Imensa. As costas doendo de tanto peso. Embora o índice de massa corpórea não o denunciasse, havia um excedente. Considerável. Importante, sim.
Fui ver e era de impressões. De papéis. De compromissos adiados. De equívocos. De enganos.
Fui ver e precisava fazer uma lista, longa.
Fui ver e saí riscando itens, um a um.
Fui ver e estava condensada. Sintetizada. Necessária. Sucinta.
Em agosto.

Estou assustada, um pouco, ainda. É que, mês de ventania, temo que me leve, leve assim.
Comprei uma âncora, para se precisar. Qualquer vento a mais, ela salta da bolsa e se enfia no solo mais próximo. Recolho-a, então, quando quiser voar.
Estou possível. Nem tanto ao mar, nem tanto ao céu.
Nem tanto à terra.

Surpreendentemente - ou não - possível. Em agosto.

14.8.09

O nada e o movimento



Menor interesse em explicar, certificar, justificar e outros da primeira conjugação. Nada que implique em culpa, preocupação, desalento: água morna em pedra pura - diria o poeta que li dia desses, vendo o barco singrar águas de outro tédio.
Convidei Marocas a fazer bombas de fabricação caseira e ela se fez de rogada, que estava de dieta e não resistia a chocolate.
Contei-lhe ainda do mínimo interesse em dizer de que me ocupo e quando, menos de saber de que se ocupam e quando, daí ter desligado a televisão e ignorado os gritos dos jornaleiros no semáforo, sua pressa, seus rostos esbaforidos, seus dribles nos monstrengos de lata, lá pra cá, cá pra ali, esperando as luzes da noite e o calor arrefecer.
Enquanto a tropa apresentava as armas, o passarinho planador deu as caras na varanda, perscrutando o interior a ver se novidades havia. E nada, nadinha. Nada continua incansavelmente a acontecer. Nada é assim, feito visita inoportuna, demorando, agregando vassouras atrás das portas, acinzentando os ladrilhos da janela, fuligem indesejada do tempo embotando as vistas.
Nada acompanha o estado de(s)ânimo, vontade sã de viagem, abandono do lar e do café esparramado no fogão.

Quando o táxi chegar vou sem malas até o porto. De lá te aceno, juro, lenço dourado da cor do sol, promessa de fartura vindoura, e mandarei cartas, muitas cartas, todas escritas à mão, caligrafia inconfundível, linheira, sóbria, e no entanto, ainda nela um quê da sensibilidade pescada do que restou.
Muitas, repito, todas em papel perfumado, gerânio, jasmim e noz moscada, pitada de maresia e bons ventos. E não volto.
Será só o que prometo, e sempre cumpro.
No mais, nenhuma explicação.

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Longe o profeta do terror
que a laranja mecânica anuncia
Amar e mudar as coisas me interessa mais

(Alucinação, Belchior)