18.1.10

Um dia comum



Quando terminei de ensaiar o samba-enredo, a escola já tinha passado. Isso porque chovia a cântaros - somente porque quis usar a expressão e falar em cântaros, como falar em píncaros, por nada além da sedução dos fonemas, das proparoxítonas - estando trincados os cântaros e a água escorrendo pelas frestas que a super bonder do desejo não conseguiria jamais colar.
Soltei a voz, não na avenida, menos ainda nas estradas, sim sob o chuveiro, ducha de água fria lavando ânimo, desânimo, sono e suores matinais, mezzo-soprano, preguiça completa.
Um samba antipopular, nada original, citações-apropriações do pé à ponta - em se tratando de enredo meio centopéia, meio bicho de sete cabeças, como meia a lua no céu que vi a caminho de casa já bem depois do ensaio, da torrente, do asseio.
Pois, como não dizia antes, tratava o enredo de verdades e mentiras, de atores e atrizes, de maracatus e ararunas, de crenças mortas e fés desaparecidas - que fé demais cheira mal, feito li nos reclames da ICMS ASA NH (leia-se: Igreja da Coleta Monetária pela Salvação das Almas Sebosas e Afins do bairro de Novos Horizontes).
Apocalíptica história em que os loucos abriam portas do hospício e marchavam nas ruas em pas-de-deux, piruetas, continências e reverências, às pedras, árvores e cães danados. Paravam, engatavam a ré e aceleravam até o tabuleiro mais próximo, onde os cavalos pastavam amarrados às suas torres e os reis dormiam seus sonos reais nem se importando com a falta de sentido do jogo-desfile-enredo-revolução.
Ninguém ingeria nada além de café, forte feito o fumo de Abdias, grosso de enrolar no dedo, protesto silente contra as lavagens de espingarda e o chafé de Salete no sanatório geral.

Mas a escola já tinha passado quando terminei de ensaiar.
E chovia e a pia pingava e o pinto piava e nada explicava nada quando parei de cantar e recebi o abraço amoroso do roupão não de seda mas de feltro felpudo marrom que nunca tive como não tive palco nem plateia nem aplauso nem os quis nem deixei de me alegrar.
Olhei então retratos e entrei na máquina do tempo e vi o bolo de chocolate com duas velinhas juntas que formavam 11 e o balcão de azulejo e as prateleiras coloridas e o periquito empalhado de olhos tão vivos que metiam medo e a janela das assombrações dos delírios dos 40 graus das febres das amigdalites da rede do abacateiro.
E vi sentado no batente da bodega o rabequeiro, a voz roufenha, o olhar trocado do desvio e da pinga, o forró rasgado, a obstinação.

Quando voltei tinha ido embora, a bodega fechada, a última dona morta, a rabeca calada, a foto desbotada, os paralelepídos enterrados no asfalto, gringos, prédios, tiroteios, e uma cidade que não reconheci jamais; como epitáfio, um samba-enredo que ninguém queria ouvir, como já não queriam ouvir o rabequeiro, que então se foi para sempre, como se foi a chuva, como se foi a cidade velha, como se foi o som quando caiu o último pingo do chuveiro.

8.1.10

minotauro

A ponta do fio se me desprendeu das mãos sem que eu notasse e lá me fui, barata tonta, bêbado aos tropeços, que quanto mais avançava mais estava em lugar nenhum, menos se aproximando da chegada, da saída.
Não via nada além das paredes, esquinas, corredores, não via ninguém, não via rabiscos nos muros, grafitos, sinais, nada além de ossos humanos, de animais, em nada pensando senão sair de lá quanto antes.
Parava, deitava no chão, sujo, ofegava, encostava o dorso no cimento morto, até voltar o rugido, o zumbido, os passos, recomeçar a perseguição, a fuga.
Foi assim o tempo de uma valsa. Uma valsa de mil tempos, pés descalços e feridos demais para dançar.

Então choveu. Forte. Trovejou. Relâmpagos riscaram formas luminosas no céu pesado, a água arrancando pedras do chão, levando embora a poeira dos pesadelos, trazendo, fino, invisível, quase, o fio, a ponta, em que me agarrei, me amarrei, e fui puxando, seguindo, o fio condutor, a chave da porta de saída.

Não havia penas, não havia cera, não havia mar, não haviam asas, só o fio. E por um fio, continuei, avançando, dobrando as esquinas, perdendo corredores, os ruídos ameaçadores se afastando, se afastando, sumindo, e não mais paredes.

E vi o campo aberto e o sol e o prado e o verde e a liberdade e o cansaço tão grande tão grande e não parecia nada e a força vinda de não sei onde movendo as pernas em desabalada corrida e o fim do cárcere do cativeiro da jaula da gaiola. Do labirinto que em segundos ruiu.

E o azul do céu.
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6.1.10

verano

Diviso as luzes do navio desde o porto. É noite. O caderno de arame não tem luzes. Nada escrito. Corro pela orla a ver se encontro a ponte. Corro até o amanhecer. Exausta, adormeço sobre um banco de areia.
Acordo em minha cama.
Vejo que sonhei.
Que um moço feiticeiro me visitou em sonho.

Ele cantou canções. Soprou-me um cisco no olho. Acariciou-me os cabelos.
Vinha de longe, de outro tempo. Falou de viagens. De gentes. De mundos. De universos. Um moço feiticeiro.
Era pintor.
Mostrou-me suas telas.
Tinha dedos longos.
Mãos bonitas.
Eu não lhe disse isso, das mãos.
Eu não lhe disse muitas coisas.
Outras, não deveria ter dito.
Ele ficou algum tempo.
Falou de amor. De dor. De rimas.
Depois partiu.
Foi bonito, o sonho.

A gente sempre acorda um dia, enquanto vida tem.
Meu despertar foi brusco.
Sinto ainda no rosto o sal.
O moço - deve ter encontrado a ponte. Ou embarcado no navio luminoso.
Meu caderno de arame ficou sobre a mesa.
Sem luzes.
Nem palavras.

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