25.12.10

O pau d'arco II




Cortei as mãos ao recolher os cacos de vidro espalhados pelo chão da cozinha. Atirei uma pedra grande de granito no ratão que tentava se esconder atrás do arbusto, e ele não morreu-reu-reu.
Nem fui à polícia e saiu em disparada, capengando, como podia, até sumir de vista. Reprovaram meu ato selvagem - atentado contra a mais ínfima vida gera reclamações e pregações ali, entre eles.
Não dei ouvidos às lições alheias, só à própria maldade, mas o ratão foi no outro sonho, antes do das mãos cortadas e do mutante que rondava a casa até que a filha apavorada corresse a aferrolhar o portão advertindo que ele era mau. Muito mau.

Velouté sentiu o drama e miou miou miou no pé da porta para que a abrisse, e veio em minha guarda e deitou no sofá, sob a rede, e velou meu sono e os sonhos ruins não vieram mais, nem mesmo debaixo do calor e da sinfonia de mosquitos.

Linda loira me receitou um filme de um rato cozinheiro e assim entrei pela madrugada, cozinheira infante, desenhos coloridos, molhos e sopas, ruas e esgotos de Paris.

Ao amanhecer, saí a aguar as mudas nos vasos, que continuaram sem dar um pio, sequer para agradecer - à exceção do pau-d’arco que agitou suas oito novas folhas em saudação preguiçosa.

Aproveitando o que imaginei ser disposição dele pra entabular conversa, disparei:

_ Que seria das noites intermináveis sem a perspectiva da manhã?

Nada, nada me disse.

E mais não lhe foi perguntado.

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imagem daqui

21.11.10

O pau-d'arco





Aparei com uma lata a água da chuva e despejei no saquinho de terra com a muda de pau-d'arco. Água da chuva dos cajus. O gato brigando quebrou o arco, perto da raiz. Enterrei de novo, a ver se tem jeito. É que em frente de casa vai ter uma árvore dessas. Para florir em setembro.

Pau-d'arco é aqui. N'outros cantos dizem ipê. Esse é rosa. Ou foi - não descobri se ainda vive.

Ontem não consegui ver o filme até o fim. Achei enfadonho. Estava com sono. Era outra língua, não tinha legenda.

Minha vizinha acaba de sair, short curto, salto alto. Temi que se desequilibrasse e caísse por cima da outra muda, a de araçá. Que teimo que é pitanga. Temi pelos dois, posso até jurar.

Riu de mim, o rapaz, quando chamei de planta o projeto da casa. Não liguei. Estava feliz. Faz dias, assim, feliz.

Triste é ser roubado. Quando se tem apego ao que se vai, pior. Eu fui. O ladrão deu com os burros n'água. Saíram molhados, os burros. Mergulhei e catei tudo de volta. Depois foi só enxugar.

Lembrei que Antônio me prometeu 500 pés-de-algo. E que o jasmineiro, quando crescer, vai ser de verde-viço.

Velouté vai se mudar. Ele, a mulher, o filho e mais três enteados. Seis felinos.
O senhorio disse ter uma tia assim, que vive com uma porção de gatos. Não faz mal. Posso acrescentar cachorro, passarinho (solto), um crocodilo, talvez. Pra ser original.

O que me intriga mesmo é o Pau-d'arco. Não sei se morreu ou florirá.

A morte, às vezes, só se faz notar depois. Muito depois.

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5.11.10

Arcano XVIII




As ruas da cidade estando perigosas à noite, fechou janelas e portas - trancas, travas, cadeados - o fosso ao redor;

o retrato do viejo brujo na parede, unhas pontiagudas, dedos magros, indicador apontando a direção do inferno, olhos injetados, nariz adunco, o retrato do velho bruxo.

Acendeu a lenha para o fogão clamando labaredas, crepitar quebrando o silêncio, uns cães uivando à lua minguante de lá de fora;

o medo abafado sob o xale, a proteção da gaiola de ferro, o prisioneiro encerrado em grades, muros, os que ergueu em torno de si;

amarelas, as páginas do livro de feitiços sob a luz da lamparina.
E um lugar seguro.
Um lugar seguro.

Os olhos da salamandra, o rabo da salamandra e a noite. A noite, tão perigosa.

Além da porta, o imprevisível, oculto, desconhecido. Além da porta, um coração.

O dentro metia medo.

O calabouço.

Fora, aterradoras - mais que as ruas da cidade, a noite -, as ruas-artérias do coração.


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"Mexo e remexo e me perco e adormeço nas ruínas da cidade submersa
sonhando um mar que não conheço
como não conheço as ondas do meu coração"

(Cidade Submersa, Paulinho da Viola)

23.10.10

Sábado



Eu quis compor um samba mais cedo, pra festejar o sábado, a vida, o calor. Procurei pela casa as notas, os acordes debaixo da penteadeira; do toucador, a melodia. Procurei e não achei.
Não tive muito tempo, que a rua do mundo me chamou a trabalhar, então fui descendo a ladeira de terra esburacada, o sol doendo nos óculos de lentes antiUVA, pró-vinho, vendo os mascates nas bicicletas carregadas de bichos de pelúcia gigantes, espelhinhos redondos, flâmulas de times de futebol, panelas de pressão, colchas de veludo, caminhos de mesa, cofrinhos de porco, pinguins de gesso. Parei no caldo de cana e bebi água gelada demais, a garganta ressequida da poeira do calor da soleira do verão apressado do outubro sem fim.

Tinha fome, muita fome, nada além de duas laranjas e cinco moedas, que somei, aproveitando o transtorno, arranjando um sete que justificasse o esforço, a crença, a cabala, o arcano, a bobagem da vez - a água ocupando o espaço da comida, meio litro de estômago preenchido com goles largos e ávidos, nenhuma pausa, respiração, palavra, som, um corpo sem barulho, sem ruídos, um corpo silente ao meio-dia.

Frente à ponte para atravessar, o rio acordava, preguiçoso, cara suja da noite nua, pernas abertas à preamar, órfão de náufragos, garrafas flutuantes, nenhuma mensagem, mapa, bilhete, sinal, tesouro, prelúdio. Silente, o rio, também.

Trocamos olhares desconfiados, rápidos, sem saudação ou festejo, até que chegasse do lado de lá, onde me esperava a carroça - dois cavalos, nenhum cocheiro, um rapazola, camisa rasgada, calção esfiapado, sujas as mãos. Passou-me as rédeas, procurou o embrulho enquanto, não sorriu quando me fui, encomenda no braço, óculos embaçados, aceno ligeiro e só.

Quando voltei, já a tarde descia seus vermelhos sobre o rio, as dores migravam ao longo da coluna, as garças catavam carrapatos pelos lombos dos bois da margem de lá.

Quando cheguei, o sábado se ia, sem festa ou café ou cachaça ou conversa qualquer.

Deitei sobre o toucador o pacote, embrulho, encomenda, que não abri, como não abri os botões da farda, as janelas da sala, os ouvidos ao vento, aos sons da rua.

Deitei sobre o tapete um corpo ausente, pesado, dorido, olhos parados no teto, pensamentos e imagens fervilhando recitais.
E assim ficou, o corpo, até chegar o sono, até morrer o infeliz violino da morena tosca no bar do lado, até, enfim, sem noite, sem samba, até, enfim, o sábado acabar.

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28.9.10

Terça-feira



Amanhecer sozinho é bom. Ninguém ao lado pra resmungar. Pra atrasar o banho. Pra conversar demais. O tempo elástico para o café silencioso, os óleos e cremes, ler as cartas e os jornais e partir para a rua do mundo.
Amanhecer sozinho pode ser triste. Pode ser chato. Pode ser terrível.
Hoje é bom.
Nuvens no céu, prenúncio de chuva no fim de setembro, temperaturas enlouquecidas, aquecimento global, estações em atraso, adiantadas.
Ontem à noite foi difícil dormir. Pensei no meu derradeiro engano antes do próximo acerto ou novo engano. Rememorei sem pesar - que sem bola de cristal ou dons de clarividência, a vida é mesmo assim.
Amanhã não vou à lotérica receber o prêmio de 61 milhões que não ganhei. Não vou comprar um navio nem um apartamento em Paris. Não vou fazer caridade no sertão nordestino ou no continente africano. Não vou à praia.
Hoje é bom. Amanhã não sei.
Se chover. Se jogar na loto. Se acordar em companhia. Só então vou saber como será.
Que há muito se quebrou minha bola de cristal.


26.8.10

Solidões

Ramos, palha, gravetos, nada restou do ninho. A ave não tinha para onde voltar. Muitas não tem mais para onde voltar.
Silêncio, escuro, sala, noite, solidão, e se sentia assim. Ave que quer voltar ao ninho. Mas ninho não há mais. Drumondianas - na lembrança.
De repente - não muito - enjôo de samba, refeição primeira em tempos recentes.
Sem querer samba e sem haver ninho, urgia acender a luz. Pra ver direito se usaria ou não maquiagem, sombra, rímel, lápis, delineador, batom, pó compacto, pra descobrir como se mostrava, a solidão.
Não a coisa boa do estar só, do querer estar só, mas um bicho mínimo roendo a alma até o buraco nela ficar do tamanho do oco do mundo.
Aquele bicho, do tamanho que fosse, carecia de se ver à luz.

Quando você toma coragem e tira o rosto de por sob o lençol, malgrado a assombração ali do lado, e olha pra ela, como perde força a assombração!

Pois assim foi. Uma puxada de lençol, uma luz se acendendo e um olhar decidido:
o diabo nunca foi, de fato, tão feio quanto se diz. Nem ela.

Tinha uma manivela plantada no meio das costas e a deixava girar.

E aí a manivela girou. E o tempo voltou. E as prateleiras coloridas. E o periquito empalhado. E o batente do balcão de azulejos.
E os vidros das janelas, o abacateiro, o prego o sangue a sandália furada da queda da cirigueleira, e e e e e ...

E era noite e frio e escuro e solidão.

E de repente, umas dores e umas mágoas e um tédio e um cansaço de viver não estavam mais.

E de repente, foram caindo no oco, tamanho do oco do mundo, telas, muitas, notas musicais, cheiros de jasmim, sabores, mel e rapadura.

E o oco foi ficando cheio.

E o bicho não era tão feio - amores vãos, dores ancestrais.

E aquele cheio - drumondianas - já ninguém lhe tirava mais.

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Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?


E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.


(José; Ausência - Carlos D. de Andrade)

2.8.10

Para o frio




Há muito não falava em sonhos. Apenas andava. Retas. Curvas. Circulos, que voltavam ao ponto primeiro. Acabando onde começava, serpente autofágica, boca no rabo, rabo na boca. Ou anéis, como as cascavéis. Ouroboros. Sem alquimias e pedras filosofais.

Dois séculos antes, o frio não lhe atingia a cintura, enredada em melenas espessas, longas, dourado-cinza, cinza incomum.
Agora entrava pelos pés, percorria a medula, abraçava o pescoço, descia as costelas, espetava o coração. Inútil, o cachecol. Cache-coeur.

Foi durante o frio, o sonho.

O vento voltara. A lua enchera. A cigana regressara.
Pela janela aberta, o morcego não volteou mais a sala. Só o viu já no quarto, em fuga, rasante sob o colchão, a felina no encalço, pega-não-pega, escorraçado, até o portão da frente. Até desaparecer.

Dormiu logo depois. E teve medo. E gritou. E ninguém ouviu. E tentou sentar na cama. O corpo desobediente, oscilava, caía, caía, e gritava mais e mais. Deu-se conta que dormia. Rezou pra Nossa Senhora de Lourdes. Abriu os olhos. Foi despertando devagar, a vista se acostumando às sombras, à escuridão. Silhuetas, raios de luz. Uma asa voando longe. Um gato na janela.

A ameaça. A sentinela. O pavor. O alívio.

No último dia do mês.

Depois de dois séculos, os cabelos se aproximavam novamente da cintura. Os fios cor de cobre. A blusa vermelha, mangas longas, os olhos cansados, os pés cansados, que há muito andava, e só andava. A voz contida, o grito preso.
Daí ter querido falar em sonhos. Quaisquer.

Cortou o silêncio o apito da chaleira.
Contra o frio, o chá quente. O cachecol. Cache-coeur. O gato na janela.
Gatos no telhado.
Contra o frio, a voz liberta.
A lareira acesa.
E o fogo.
E o fogo.

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"Línguas rubras dos amantes
sonhos sempre incadescentes
recomeçam desde instantes
que os julgamos mais ausentes
A recomeçar, recomeçar como as canções e epidemias
a recomeçar como a colheita, como a lua e a covardia
a recomeçar como a paixão
..."
(Caça à raposa; João Bosco - Aldir Blanc)

26.5.10

Visita

Não havia muito o que fazer por ela, que corria a casa enlouquecida, cavando prateleiras, invadindo armários, puxando portas.

Tinha fome, todas as fomes, de líquido, de sólidos, de fluidos. Fome no estômago, fome no sexo.
Subia pelas paredes, literalmente, colando no vidro da janela o focinho. E ninguém, fora a senhora compadecida, reparava na aflição em seus grandes olhos de folha de grama.
Por ela, aplacou a agonia do estômago.

Isso ontem.

Desapareceu entre os arbustos.
Ixóreas despetaladas, grilos silentes, flores no chão, bichos-de-pé, teto pontilhado de luzes distantes.

Hoje voltou com a manhã.

Atrás, um séquito:
- um loiro, um negro, um mourisco.

Um alarido infeliz, protestos bocejantes, amuados, dos recém-despertos moradores. Indiferentes, os pretendentes.

Pensei que ficaria. Ofereci comida. Cama. Abrigo.
Foi-se como veio. Como um raio.
São assim, os gatos. São da noite. Das ruas. Dos telhados.
Cedo ou tarde o apelo da caça ou do sexo os leva embora.
Bom não ter havido o tempo para a afeição sair da semente.
Que é uma coisa estranha, mesmo, o amor.

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"Os olhos da cobra verde
Hoje foi que arreparei
Se arreparasse há mais tempo
Não amava quem amei
"

24.4.10

A folha do livro

Bonança chegada, céu de abril azulou.
Nuvens e pesares passados, perdi os óculos, de mais graus que o necessário, sem lamentar. Ajustadas as lentes dos novos, aquilo que eu olhava retomou sua real dimensão.
E a resposta? Ah, a resposta... Primordial era a pergunta, não a resposta.
A dama das letras aconselhava, sempre: - faça a pergunta certa! Pois foram tantos anos fazendo a pergunta errada que a resposta nem veio, nem sequer existia.
Descobri foi que havia o sim porque sim. E desisti da explicação deste - que prescinde de delongas, de teses e tratados - para ir atrás dos sins que tem porquês.
Houve quem quisesse responder, à toa, sem saber. Nada convincente.
Folheando um livro, achei a pergunta. E a resposta. Não nas páginas, mas entre elas, numa folha de castanheiro que ali guardei um dia, há muito tempo. Tudo então pareceu tão óbvio e fácil e claro, que só mesmo tendo olhado por lentes erradas para passar tanto tempo sem ver.

Depois que clareou, decidi prestar mais atenção nos alimentos. Adotei dieta variada:
- legumes, para restar tenra, coração terno;
- fibras, para o estômago, para os intestinos. Para digerir o mundo;
- grãos, para o fortalecimento. Um quê de dureza;
- e brotos. Para despertar o novo, o olhar primeiro, nu, sobre as coisas bonitas da vida (ainda as há - te asseguro!).
Não esqueci os cajus da sobremesa. Cajus de cajueiro de duna, de areia, daquele que tira de onde parece não ter, de solo pobre, a vida. E a devolve em ferro e sumo, em doce e ranço. Separei o ranço e o doce e assimilei do sumo o ferro, para o sangue. Glóbulos vermelhos. Ânimo novo.

Enquanto leio, escrevo, me alimento, você sonha em uma cidade de além-mares. Com uma cidade com nome de Luz.
Vê? Luz. Vejo.

Enquanto encontro perguntas e respostas, peço notícias da sua primavera, outro hemisfério.

Que o céu azulou. Que finda abril. E voltaram as canções.


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"Não ter medo de nenhuma careta
Que pretende assustar
Encontrar o coração do planeta
E mandar parar
Pra dar um tempo de prestar atenção nas coisas
Fazer um minuto de paz
Um silêncio que ninguém esquece mais"

(A Página do Relâmpago Elétrico -
Beto Guedes/Ronaldo Bastos)
.

12.4.10

Homo infimus




Madrugadinha, cheiro de café, portas e janelas abertas, pintas vermelhas pelos dedos das mãos, aceno em adeus às muriçocas saciadas.
Penso em passar primeiramente na botica, última tentativa antes de proclamar indeléveis as manchas na planta dos pés, que nenhum esfregão detergente sabão saponáceo alvejante conseguiu remover - conseqüências das menos nefastas da peregrinação, longa, no pântano.

(Direi à loirinha, a gordinha: dois dias depois me lembrei do nome - Thompson. Direi também o que desde o início suspeitava: não me trairia, a memória.)

Olhando as fotos de Roldão e Sebastien, agradeço a eles o retorno do sono, mesmo que leve e descontínuo. O discernimento – gracias, my self – volta despacito. Os anjos circundam o entorno, desconfiados mas intimamente satisfeitos com a debandada das almas sebosas.

Meus cabelos cresceram nesse meio tempo, o da peregrinação. Deixei-os em paz, ao abrigo de tesouras e Dalilas.
A salvo da areia movediça, voltei a acordar cedo, entoando o hino de adeus ao pântano, às armas, aos paraísos artificiais - sem culpas ou saudade.
O corpo agradeceu. A mens insana se refez.

Penso em anteontem. Na mesa farta em que comi e comi e comi, camarões, tapiocas, cevadas, leveduras, ubaias, catolés.
Estava assim, nutrida, serena, contemplativa, quando choveu.
Não disse dessa água não beberei e aparei na boca umas gotas da chuva antes que alcançasse o chão enterrando ossos esquecidos meio à mata.
Permiti que lavasse meus cabelos e alma e pés manchados. Esvaziei então o embornal e pisei, descalça, o solo molhado, chakra aberto à cura, que a terra muito sabe e a muito transforma: carne, ossos, esterco. E flor.



Agora, sorvo o café devagar, quase refeita.
Repenso a visita ao boticário e desisto: não venderá, é certo, frascos de tempo.
Desnecessário, também, o repelente: não voltarão, as muriçocas.
Nem os morcegos.
E nem mais vampiro algum.

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"[...]Fruto injustificável dentre os frutos,
Montão de estercorária argila preta,
Excrescência de terra singular.
Deixa a tua alegria aos seres brutos,
Porque, na superfície do planeta,
Tu só tens um direito: — o de chorar!
"
(Homo Infimus; Augusto dos Anjos)

paisagem incidental: Urca do Tubarão

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4.4.10

Alimento



Três degraus acima, na prateleira da cozinha, o caldeirão de cobre, teias e poeira chega ao alcance da mão.
Para o cozido, não pedaços dos filhos, Medéia contemporânea. Não o convite para a ceia. Não o preparo amoroso do alimento, mãos à obra, mão na massa, mãos limpas, mão que afaga. Para o cozido, água. E pedras.
A sopa do monge. Alimento e partilha.

Um caldeirão de afetos. Souvenirs. Primaveras. Um caldeirão de sonhos. E vivências.

Pois, escolha os ingredientes a ajuntar. Você tem fome de quê?
Se a sopa é amarga, se o pão é bolorento, não tome dessa sopa, não coma desse pão.
Ao cálice de veneno, preferível a sede e a estrada, longa, que leva à fonte de água pura.
Às migalhas do caminho, preferível a fome e o medo de entrar na mata, a vereda até a árvore da vida e da morte, a subida aos galhos mais altos, o bom fruto.
Prepare sua refeição. Partilhe seu alimento. E escolha - muito bem - os convivas.
Mas só depois do silêncio. E do enfraquecimento. Da morte. Do renascimento. Quando já lhe parecer leve o caldeirão de cobre, três degraus acima, na prateleira da cozinha, ao alcance da mão. A que afaga. A que apedreja.

Para ajuntar à sopa de pedra água pura. E fruto bom.

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12.2.10

Navegar. Viver.




Ontem trouxe o barco para casa. O leme quebrado tinha conserto, o mastro horizontal, não.
Ainda assim, o vento enfunou as velas e partimos, em pensamento, risco grande de soçobrar.

Havia um rato morto no tanque, já duro, sobre o saco de estopa que um dia guardou livros. Pus ambos no lixo e se foram.

Sonhei a vida inteira com o barco. Ele chegou, enfim. Quebrado. Ainda assim, bonito de ver. Imponente, sobre a prateleira mais alta, augúrio de viagem, outros mares.

Os ratos abandonam o navio.
O capitão naufraga com ele.

O rato está morto.
O barco, quebrado.

No peito, um peso e uma dor.
Nas costas, uma dor.
No coração, uma dor.

Nos olhos, uma estrela.
E um pesar.

Pelo veleiro.
Pelo rato.

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"Não precisa ir muito além dessa estrada
Os ratos não sabem morrer na calçada
É hora de você achar o trem
E não sentir pavor
Dos ratos soltos na casa
Sua casa.
"
(Lô Borges, Trem de doido)

18.1.10

Um dia comum



Quando terminei de ensaiar o samba-enredo, a escola já tinha passado. Isso porque chovia a cântaros - somente porque quis usar a expressão e falar em cântaros, como falar em píncaros, por nada além da sedução dos fonemas, das proparoxítonas - estando trincados os cântaros e a água escorrendo pelas frestas que a super bonder do desejo não conseguiria jamais colar.
Soltei a voz, não na avenida, menos ainda nas estradas, sim sob o chuveiro, ducha de água fria lavando ânimo, desânimo, sono e suores matinais, mezzo-soprano, preguiça completa.
Um samba antipopular, nada original, citações-apropriações do pé à ponta - em se tratando de enredo meio centopéia, meio bicho de sete cabeças, como meia a lua no céu que vi a caminho de casa já bem depois do ensaio, da torrente, do asseio.
Pois, como não dizia antes, tratava o enredo de verdades e mentiras, de atores e atrizes, de maracatus e ararunas, de crenças mortas e fés desaparecidas - que fé demais cheira mal, feito li nos reclames da ICMS ASA NH (leia-se: Igreja da Coleta Monetária pela Salvação das Almas Sebosas e Afins do bairro de Novos Horizontes).
Apocalíptica história em que os loucos abriam portas do hospício e marchavam nas ruas em pas-de-deux, piruetas, continências e reverências, às pedras, árvores e cães danados. Paravam, engatavam a ré e aceleravam até o tabuleiro mais próximo, onde os cavalos pastavam amarrados às suas torres e os reis dormiam seus sonos reais nem se importando com a falta de sentido do jogo-desfile-enredo-revolução.
Ninguém ingeria nada além de café, forte feito o fumo de Abdias, grosso de enrolar no dedo, protesto silente contra as lavagens de espingarda e o chafé de Salete no sanatório geral.

Mas a escola já tinha passado quando terminei de ensaiar.
E chovia e a pia pingava e o pinto piava e nada explicava nada quando parei de cantar e recebi o abraço amoroso do roupão não de seda mas de feltro felpudo marrom que nunca tive como não tive palco nem plateia nem aplauso nem os quis nem deixei de me alegrar.
Olhei então retratos e entrei na máquina do tempo e vi o bolo de chocolate com duas velinhas juntas que formavam 11 e o balcão de azulejo e as prateleiras coloridas e o periquito empalhado de olhos tão vivos que metiam medo e a janela das assombrações dos delírios dos 40 graus das febres das amigdalites da rede do abacateiro.
E vi sentado no batente da bodega o rabequeiro, a voz roufenha, o olhar trocado do desvio e da pinga, o forró rasgado, a obstinação.

Quando voltei tinha ido embora, a bodega fechada, a última dona morta, a rabeca calada, a foto desbotada, os paralelepídos enterrados no asfalto, gringos, prédios, tiroteios, e uma cidade que não reconheci jamais; como epitáfio, um samba-enredo que ninguém queria ouvir, como já não queriam ouvir o rabequeiro, que então se foi para sempre, como se foi a chuva, como se foi a cidade velha, como se foi o som quando caiu o último pingo do chuveiro.

8.1.10

minotauro

A ponta do fio se me desprendeu das mãos sem que eu notasse e lá me fui, barata tonta, bêbado aos tropeços, que quanto mais avançava mais estava em lugar nenhum, menos se aproximando da chegada, da saída.
Não via nada além das paredes, esquinas, corredores, não via ninguém, não via rabiscos nos muros, grafitos, sinais, nada além de ossos humanos, de animais, em nada pensando senão sair de lá quanto antes.
Parava, deitava no chão, sujo, ofegava, encostava o dorso no cimento morto, até voltar o rugido, o zumbido, os passos, recomeçar a perseguição, a fuga.
Foi assim o tempo de uma valsa. Uma valsa de mil tempos, pés descalços e feridos demais para dançar.

Então choveu. Forte. Trovejou. Relâmpagos riscaram formas luminosas no céu pesado, a água arrancando pedras do chão, levando embora a poeira dos pesadelos, trazendo, fino, invisível, quase, o fio, a ponta, em que me agarrei, me amarrei, e fui puxando, seguindo, o fio condutor, a chave da porta de saída.

Não havia penas, não havia cera, não havia mar, não haviam asas, só o fio. E por um fio, continuei, avançando, dobrando as esquinas, perdendo corredores, os ruídos ameaçadores se afastando, se afastando, sumindo, e não mais paredes.

E vi o campo aberto e o sol e o prado e o verde e a liberdade e o cansaço tão grande tão grande e não parecia nada e a força vinda de não sei onde movendo as pernas em desabalada corrida e o fim do cárcere do cativeiro da jaula da gaiola. Do labirinto que em segundos ruiu.

E o azul do céu.
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6.1.10

verano

Diviso as luzes do navio desde o porto. É noite. O caderno de arame não tem luzes. Nada escrito. Corro pela orla a ver se encontro a ponte. Corro até o amanhecer. Exausta, adormeço sobre um banco de areia.
Acordo em minha cama.
Vejo que sonhei.
Que um moço feiticeiro me visitou em sonho.

Ele cantou canções. Soprou-me um cisco no olho. Acariciou-me os cabelos.
Vinha de longe, de outro tempo. Falou de viagens. De gentes. De mundos. De universos. Um moço feiticeiro.
Era pintor.
Mostrou-me suas telas.
Tinha dedos longos.
Mãos bonitas.
Eu não lhe disse isso, das mãos.
Eu não lhe disse muitas coisas.
Outras, não deveria ter dito.
Ele ficou algum tempo.
Falou de amor. De dor. De rimas.
Depois partiu.
Foi bonito, o sonho.

A gente sempre acorda um dia, enquanto vida tem.
Meu despertar foi brusco.
Sinto ainda no rosto o sal.
O moço - deve ter encontrado a ponte. Ou embarcado no navio luminoso.
Meu caderno de arame ficou sobre a mesa.
Sem luzes.
Nem palavras.

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