30.12.08

Missiva


Uma carta, como antigamente se mandava, caligrafia denunciando o estado d'alma.

Uma carta relatando o que ocorreu desde que, desde semana passada, século, milênio passados, desde quando, quando nada mais chegou.

Bilhete, até, poderia, dizendo, aonde foi, se comeu, quanto dormiu, quantas horas insones. Daquela dor, se passou; das crianças, se cresceram; do peito, se ainda aperta; dos duzentos exercícios diferentes, tempo, tempo pra eles, tem?

Telegrama, talvez, contando breve: do coração - entorpeceu-se, bate, parou?

Onde pousa, onde, a casa, que planeta, esquina, rua?

Que oceano lhe alcança, quantas ondas fustigando corpo, apagando marcas, pegadas, passos; qual cor, a areia; quantos raios diários castigando pele, dourando ombros, curtindo couro?

Quem lhe ama, hoje? Quem agora ama? Quantas, quais, as paixões da hora?
Quais, os sonhos? Que canções ouve? Que palavras novas aprendeu? Que caminho, rota, destino, para o ano?

Só para dizer.
Por acalmar, repartir, compartilhar, dividir, somar, confortar, arrematar com linha de seda.

Só para não se perder. De vista. De vez.

27.12.08

Demolição



Não há como dizer em meia-palavra. E nem meio som, meio sono, meia alegria, meio sonho. Era noite recém-nascida, meia-luz. Era uma vereda, uma picada, atalho. Pra morte. Qualquer um, sã consciência, o saberia. Nem quis saber, que consciência sã não tinha, e foi, corredor polonês, olhos de lince correndo a passagem, cobras e lagartos preparando o bote. Passou. Sem remo. Lenitivo a tiracolo, passo aprumado, ligeiro, o comprido do bar até a mesa, o povo de sempre, o socorro, acolhida. Tirou o adivinhão do bolso, banco de alvenaria, pernas balançando, nada à vontade.
Um, dois goles, um, dois copos, na entrada. À porta, olhos fixos, nada, ninguém, tanta, tanta gente. Bêbados, bêbadas, rapazes, moças, alegres. Uma, duas garrafas. Um aviso, distância sem fim até o balcão. O balcão do bar, o olhar, sorriso, risos iluminando a noite, luzes ofuscando em torno, tudo o mais sumindo, fugindo, passo da eternidade, portal do paraíso, divina comédia, inversão do percurso. Tanta, tanta luz naquela noite longe, naquele bar, olho no olho, riso no riso, dedos e panos, tanta promessa, tanta ventura, tanta alegria, tão pouco tempo e mais ninguém, mais nada, nem mais sons fora, círculo invisível, halo fosforescente, invólucro, crisálida, metamorfose.

Encanto.

Hiato.

A estrada nunca tem fim.
Uma lágrima e uma lembrança.

Inda ontem passou por lá. Na calçada, uns tijolos de demolição.
Nem mesmo o bar existe mais.

22.12.08

EsperAção


Se fosse tirar férias, escreveria bilhete, nota, carta, aviso de despedida, que não me ausento sem adeus, tchau, ’té mais. Não é o caso. Nada de férias, veraneio. Como não os verão - férias e veraneio - trocentos e vinte e sete zilhões de brasileiros, algo mais, algo menos, trabalhando janeiro sol e chuva. E nem verão país melhor, país nenhum, nenhum verão, tão logo, talvez mais tarde, com as recusas a velar a esperança; negação terminante a fazê-lo.
Ano de 2009: dois mais nove, nove fora, dois. Reza o tarot: o arcano da Sacerdotisa, o príncipio feminino, receptividade, mistério, intuição. Ainda, a dualidade, claro. Por outra, dois mais nove, nove dentro, onze: o arcano da Força, o domínio sobre o leão, a claridade solar.
Portanto, ou por nada a ver, doladodecá tudo será talvez. Que talvez eu parta, talvez fique, talvez mude de endereço, talvez fique, talvez passe, talvez fique. E talvez nem case nem compre uma bicicleta. De certo mesmo, nadinha além da tal i-n-d-e-f-i-n-i-ç-ã-o, incômoda como bem sabe sempre ser. Ao fim e ao cabo, tudo se iluminará, diz A Força. Caso não, o que não tiver remédio, remediado estará – costume de dizer de dona Nica, grande pessoa (cacófato à parte) – e o jeito vai ser esperar com Capinam. Ou ir capinando, arando, semeando, regando, preparando a colheita. Plantando o jardim, com o Cândido de Voltaire.
Em razão de mais trabalho agora, pois, digo 'té ano que vem. E Feliz Natal e Feliz Ano Novo e Feliz Vida!

De presente de fim de ano:

Janeiro Ainda

Te esperei vinte e quatro horas ou mais
de cada dia que eu vivi
Te esperei mais de sete dias por semana
sem um só dia te trair
Te esperei mais de nove meses sem poder parir
Mais de doze meses cada ano,
e te esperava
até um novo século surgir
Te esperei na mesa, te esperei na cama,
Olhando as estrelas te esperei na lama.
Te esperei bebendo,
te esperei calado,
embriagado
e gritando por aí
Te esperei com fome, te esperei sem nome,
Uma vez chorando e outra sem sorrir.
Num barraco
numa esquina,
te esperei pelo mundo,
te esperei sempre assim
num buraco sem fundo
por dentro de mim
Mata derrubada,
Maré poluída,
nas encruzilhadas,
pelas avenidas
Te esperei no sangue, te esperei no mangue,
água derramada,
vida proibida,
hóstia consagrada, pena colorida.
Te esperei de gravata, de luva e sapato
Com todo recato, nua e mal vestida.
Te esperei toda a morte,
te esperei toda a vida
no regato, no esgoto,
Te esperei no mato,
no eclipse lunar, no luar neon,
Na escura solitária, no clarão das luminárias,
No ponto de encontro entre a bela e o monstro,
No raso da Catarina, na profunda dos infernos
Te esperei nos azes, te esperei nos ternos
Te esperei na tua, te esperei na minha
Te esperei sozinho, te esperei sozinha,
Te esperei Clarice, te esperei Virgínia
Te esperei tantos marços e mais fevereiros
Esperei por inteiro e espero ainda
Nesse novo janeiro
Te dar boas vindas.


(José Carlos Capinam)

"Il faut cultiver notre jardin"

(Candide ou L'optimisme - Voltaire)

19.12.08

Sob o vento




Bastaria saber do que paira, do que fica, do que invade quando tudo some. Foram tantas as pontes, léguas, tinta preta no papel, tantas, tantas páginas re-viradas, tantas partidas sem retorno, sem vencedor, tantos tesouros enterrados...

Barcarola, jangada, nau, tantos mares, tempo, tempos, anos no azul, perdendo-se no azul.

Bastaria uma bandeira. A bujarrona içada onde nunca dantes.
A mensagem na garrafa recolhida, no rum, no naufrágio, no baú, nos escombros, destroços, dobrões, na ilha.

Alvíssaras, espera ainda. Do fim do mundo. Varrendo nuvens, dissipando o cinza, o temporal.

Estivesse chovendo, água molhando a areia, escorrendo no coqueiral, lavando a madrugada da ressaca - lua cheia em marés de janeiro devastando a costa.

Estivesse dormindo o vento, sol prateando a calma amanhecida do mar.

Estivesse desperta, viva. Acreditasse, ao menos, e saberia.

E bastaria saber do aceno antes da trombeta anunciando a chegada do derradeiro anjo da morte.



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15.12.08

Dentro do meu cansaço




É claro que dentro do meu cansaço não cabe ninguém. Arrumo meu mosaico de ladrilhos do tempo. Pintei ainda há pouco as persianas, de ocre, espremi laranjas, espantei o cão, lambi o pires do gato fujão, renovei a porção de ração do rato que deixa migalhas de pão misturadas ao que ficou dos pelos do gato na grama, às marcas das patas na terra.
A semana mal começou, vem logo o natal natal das crianças, da estrela guia e do peru de fora, que não tem bico, então não fala, aí não ouço, não ouço ele nem o guiné-galinha d’angola e nem pavão, glu, leó, tôfraco, nem ouço o jingle bells a toda altura na casa do vizinho da direita, de direita, melhor dizendo, só pode, o fdp, que me desperta instintos vis, mas aprendi mandamentos - não matarás-roubarás-fornicarás-cobiçarás - aí fecho as portas, as janelas, ligo o rádio alto, bem alto, não resisto e vou até o portão e vejo que o bar fechou, e não posso matá-lo, o vizinho, nem devo, no fundo nem quero, que tenho piedade, infinita piedade, desesperada piedade, dele, dos insetos, lagartixas, sapos, gatos-de-rua, gentes-sós. De barata é que não, corro léguas quando voam, repulsivas, disparo até o armário onde esperam as havaianas, lanço mão do baygon, do detefon, do on disponível, descarrego nelas minha ira, asco, pavor, respiro aliviada até o acesso da tosse alérgica e me refaço. E volto à semana que mal começou, e estando o bar fechado, abro o vinho, bom mas da promoção, que aguardava o fim da montagem do mosaico. Não pensei que o acabaria tão logo, o mosaico. Há que começar outro, urgente, que muitos vinhos não há e o natal natal dista uma semana de agora e preciso fazer coisas, muitas coisas até lá.
Falta zarcão na grade, a ferrugem vai comer tudo, senão. A maresia perto faz dessas coisas. Como faço coisas, muitas coisas, também eu, todo o tempo, o tempo todo, pra evitar a ferrugem, a gordura abdominal, a angústia, o tédio. Faço muito, que não quero pensar muito, não quero sentir nada, nem posso, nem devo, e já nem lembro mais como é. Por tudo isso não tenho e nem quero tempo, e canso. Que dentro do meu cansaço não cabe ninguém.

8.12.08

As tintas da narrativa



Sentei-me, na ante-sala do salão de beleza, esperando o tempo sem fim do cabelereiro e observei a moça à minha frente.
Pintou de preto as unhas e a manicure quis adivinhar: - cores fortes, pessoas determinadas, né?
Nada respondeu com palavras. Um meio sorriso, um olhar veloz, ambíguo, de assentimento ou discordância. Vai saber.
Hesitou. Contou um pouco, então, se bem que não assim. Em todo caso:

_ Determinação não era a tônica do momento, mas a necessidade primeira, que desde a opção pelo exorcismo da derradeira dor, desde a decisão pelo entorpecimento, tudo ia transcorrendo moroso, sem vontade. Decisão só esboçada, nenhuma determinação. Até o momento em que a última insônia lhe trouxe as respostas. Então quis. Quis muito. Quis com toda a força os sonhos que restavam e o retorno aos projetos adiados. Quis distância, distanciamento, observação, silêncio. Renascimento. Quis o sepultamento de todas as perguntas vãs, das dúvidas caladas, das mágoas silenciosas. Quis libertação. E limpou casa, alma e vida. E desfez-se de tudo o que sobrava. E desprendeu-se de teias, tralhas, supérfluos. E tirou o pó das lembranças boas e guardou-as. Com alguma solenidade. Com muito zelo. Então, leve, pôde voltar a caminhar, com mais Luz, mais Amor, mais Alegria.

No caminho iniciado - percebi -, indiferença aparente, só: o jogo muscular que pratica, com que finge e filtra, interpreta, imita, ao fim denuncia a emoção que escorre, desautorizada, no gesto e no olhar que sobram na distração, no riso que esquece de guardar, na quietude, até, na ausência mesma de reação.

Eu a vi partir. Ouvi sua voz grave e seu silêncio e seus passos firmes e vi suas unhas negras e vi os olhares que a acompanharam, sem os decifrar.
Não se deteve. Seguiu, segredando em olhares, que a distância entre o impossível e o possível é do tamanho do querer. Nada mais.

Não contracenei. Fiquei pensando sobre a sua narrativa, que lembrou-me outra, construída em torno de um enredo banal: a velha seqüência sedução-traição-abandono contrariando as previsões da cartomante, as promessas de nova esperança, presentes do universo, prêmio, merecimento e tal e tal. Desta, havia eu apreciado as cores.

Não me compadeci em nenhum dos casos, confesso. Mais me importava ouvir tais histórias. Muito mais coloridas, instigantes, sedutoras, do que a vida às vezes é capaz de ser. Mesmo quando tecidas a partir de enredos banais.

4.12.08

“Serás outra vez montanha”.

Cigarros de filtro amarelo. Sons na vitrola. Trinta anos. Quinze anos. Tantos anos...
Algo volta, alguém volta. Alguém sempre volta aos lugares onde um dia foi feliz: “a los viejos sitios donde amó la vida”. Ao fundo de si. Às sementes do loureiro no quintal. Ao quintal com pés de sonho.
Partir, voltar. A mesma reta. As mesmas curvas. A mesma impressão do que não foi quando já se foi. A mesma vontade de outrora. Nós, outros. Nosotros, nunca mais. Como nunca mais ouvirão o seu cantar, quando o meu, contigo aprendi. E ainda ecoam, o meu e o teu, pungentes.
Um nome esquecido nas quebradas, inteiras, bipartidas, nas partidas, nas perdas - porque sempre perdemos, aqui. Que ganhamos além, na longa estrada, onde esperamos eternamente os ciganos passarem com medalhas e adivinhações. Decifrando linhas, da vida, da sorte, do amor, de amores.
Vida vã, vida sã, vida insana, vida recorrente, efêmera, eterna em um minuto. Soçobro. De ti sobra, só, lembrança, indelével nos matizes de todos os entardeceres onde caibam devaneios, nostalgias e anúncios de acordes para a madrugada. Que contará a triste história das estátuas – como na canção – que não podem sair juntas nunca. Que não riem porque nunca tiveram infância.
Madrugada em que, silencioso e ausente, sempre estará: ‘sensível como a chuva e profundo como a Paz’.

1.12.08

Rol de coisas, rol de sensações



Na mala de mão, um litro de vinho rosado, um de soro antiofídico: ainda que
um pouco bêbada, desenvenenada para a pequena morte, para a grande fuga.
Guardada pra outra vida, caso haja outra, aquela esperança.
Nessa, desesperança nenhuma.
Não muito, além de certo descaso, uma falta de tintas, uma falta de sonhos, uma falta de euforia. Uma canseira. Indiferença. Pingos de tédio, calor. Amolecimento, mormaço. Um sono interrompido. Um sonho adiado. Uma drumondiana ausência assimilada.
Nenhuma aposta. Preparativos de viagem.
Adeuses.

a vida é assoviar