24.4.10

A folha do livro

Bonança chegada, céu de abril azulou.
Nuvens e pesares passados, perdi os óculos, de mais graus que o necessário, sem lamentar. Ajustadas as lentes dos novos, aquilo que eu olhava retomou sua real dimensão.
E a resposta? Ah, a resposta... Primordial era a pergunta, não a resposta.
A dama das letras aconselhava, sempre: - faça a pergunta certa! Pois foram tantos anos fazendo a pergunta errada que a resposta nem veio, nem sequer existia.
Descobri foi que havia o sim porque sim. E desisti da explicação deste - que prescinde de delongas, de teses e tratados - para ir atrás dos sins que tem porquês.
Houve quem quisesse responder, à toa, sem saber. Nada convincente.
Folheando um livro, achei a pergunta. E a resposta. Não nas páginas, mas entre elas, numa folha de castanheiro que ali guardei um dia, há muito tempo. Tudo então pareceu tão óbvio e fácil e claro, que só mesmo tendo olhado por lentes erradas para passar tanto tempo sem ver.

Depois que clareou, decidi prestar mais atenção nos alimentos. Adotei dieta variada:
- legumes, para restar tenra, coração terno;
- fibras, para o estômago, para os intestinos. Para digerir o mundo;
- grãos, para o fortalecimento. Um quê de dureza;
- e brotos. Para despertar o novo, o olhar primeiro, nu, sobre as coisas bonitas da vida (ainda as há - te asseguro!).
Não esqueci os cajus da sobremesa. Cajus de cajueiro de duna, de areia, daquele que tira de onde parece não ter, de solo pobre, a vida. E a devolve em ferro e sumo, em doce e ranço. Separei o ranço e o doce e assimilei do sumo o ferro, para o sangue. Glóbulos vermelhos. Ânimo novo.

Enquanto leio, escrevo, me alimento, você sonha em uma cidade de além-mares. Com uma cidade com nome de Luz.
Vê? Luz. Vejo.

Enquanto encontro perguntas e respostas, peço notícias da sua primavera, outro hemisfério.

Que o céu azulou. Que finda abril. E voltaram as canções.


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"Não ter medo de nenhuma careta
Que pretende assustar
Encontrar o coração do planeta
E mandar parar
Pra dar um tempo de prestar atenção nas coisas
Fazer um minuto de paz
Um silêncio que ninguém esquece mais"

(A Página do Relâmpago Elétrico -
Beto Guedes/Ronaldo Bastos)
.

12.4.10

Homo infimus




Madrugadinha, cheiro de café, portas e janelas abertas, pintas vermelhas pelos dedos das mãos, aceno em adeus às muriçocas saciadas.
Penso em passar primeiramente na botica, última tentativa antes de proclamar indeléveis as manchas na planta dos pés, que nenhum esfregão detergente sabão saponáceo alvejante conseguiu remover - conseqüências das menos nefastas da peregrinação, longa, no pântano.

(Direi à loirinha, a gordinha: dois dias depois me lembrei do nome - Thompson. Direi também o que desde o início suspeitava: não me trairia, a memória.)

Olhando as fotos de Roldão e Sebastien, agradeço a eles o retorno do sono, mesmo que leve e descontínuo. O discernimento – gracias, my self – volta despacito. Os anjos circundam o entorno, desconfiados mas intimamente satisfeitos com a debandada das almas sebosas.

Meus cabelos cresceram nesse meio tempo, o da peregrinação. Deixei-os em paz, ao abrigo de tesouras e Dalilas.
A salvo da areia movediça, voltei a acordar cedo, entoando o hino de adeus ao pântano, às armas, aos paraísos artificiais - sem culpas ou saudade.
O corpo agradeceu. A mens insana se refez.

Penso em anteontem. Na mesa farta em que comi e comi e comi, camarões, tapiocas, cevadas, leveduras, ubaias, catolés.
Estava assim, nutrida, serena, contemplativa, quando choveu.
Não disse dessa água não beberei e aparei na boca umas gotas da chuva antes que alcançasse o chão enterrando ossos esquecidos meio à mata.
Permiti que lavasse meus cabelos e alma e pés manchados. Esvaziei então o embornal e pisei, descalça, o solo molhado, chakra aberto à cura, que a terra muito sabe e a muito transforma: carne, ossos, esterco. E flor.



Agora, sorvo o café devagar, quase refeita.
Repenso a visita ao boticário e desisto: não venderá, é certo, frascos de tempo.
Desnecessário, também, o repelente: não voltarão, as muriçocas.
Nem os morcegos.
E nem mais vampiro algum.

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"[...]Fruto injustificável dentre os frutos,
Montão de estercorária argila preta,
Excrescência de terra singular.
Deixa a tua alegria aos seres brutos,
Porque, na superfície do planeta,
Tu só tens um direito: — o de chorar!
"
(Homo Infimus; Augusto dos Anjos)

paisagem incidental: Urca do Tubarão

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4.4.10

Alimento



Três degraus acima, na prateleira da cozinha, o caldeirão de cobre, teias e poeira chega ao alcance da mão.
Para o cozido, não pedaços dos filhos, Medéia contemporânea. Não o convite para a ceia. Não o preparo amoroso do alimento, mãos à obra, mão na massa, mãos limpas, mão que afaga. Para o cozido, água. E pedras.
A sopa do monge. Alimento e partilha.

Um caldeirão de afetos. Souvenirs. Primaveras. Um caldeirão de sonhos. E vivências.

Pois, escolha os ingredientes a ajuntar. Você tem fome de quê?
Se a sopa é amarga, se o pão é bolorento, não tome dessa sopa, não coma desse pão.
Ao cálice de veneno, preferível a sede e a estrada, longa, que leva à fonte de água pura.
Às migalhas do caminho, preferível a fome e o medo de entrar na mata, a vereda até a árvore da vida e da morte, a subida aos galhos mais altos, o bom fruto.
Prepare sua refeição. Partilhe seu alimento. E escolha - muito bem - os convivas.
Mas só depois do silêncio. E do enfraquecimento. Da morte. Do renascimento. Quando já lhe parecer leve o caldeirão de cobre, três degraus acima, na prateleira da cozinha, ao alcance da mão. A que afaga. A que apedreja.

Para ajuntar à sopa de pedra água pura. E fruto bom.

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