25.12.10

O pau d'arco II




Cortei as mãos ao recolher os cacos de vidro espalhados pelo chão da cozinha. Atirei uma pedra grande de granito no ratão que tentava se esconder atrás do arbusto, e ele não morreu-reu-reu.
Nem fui à polícia e saiu em disparada, capengando, como podia, até sumir de vista. Reprovaram meu ato selvagem - atentado contra a mais ínfima vida gera reclamações e pregações ali, entre eles.
Não dei ouvidos às lições alheias, só à própria maldade, mas o ratão foi no outro sonho, antes do das mãos cortadas e do mutante que rondava a casa até que a filha apavorada corresse a aferrolhar o portão advertindo que ele era mau. Muito mau.

Velouté sentiu o drama e miou miou miou no pé da porta para que a abrisse, e veio em minha guarda e deitou no sofá, sob a rede, e velou meu sono e os sonhos ruins não vieram mais, nem mesmo debaixo do calor e da sinfonia de mosquitos.

Linda loira me receitou um filme de um rato cozinheiro e assim entrei pela madrugada, cozinheira infante, desenhos coloridos, molhos e sopas, ruas e esgotos de Paris.

Ao amanhecer, saí a aguar as mudas nos vasos, que continuaram sem dar um pio, sequer para agradecer - à exceção do pau-d’arco que agitou suas oito novas folhas em saudação preguiçosa.

Aproveitando o que imaginei ser disposição dele pra entabular conversa, disparei:

_ Que seria das noites intermináveis sem a perspectiva da manhã?

Nada, nada me disse.

E mais não lhe foi perguntado.

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imagem daqui