30.12.08

Missiva


Uma carta, como antigamente se mandava, caligrafia denunciando o estado d'alma.

Uma carta relatando o que ocorreu desde que, desde semana passada, século, milênio passados, desde quando, quando nada mais chegou.

Bilhete, até, poderia, dizendo, aonde foi, se comeu, quanto dormiu, quantas horas insones. Daquela dor, se passou; das crianças, se cresceram; do peito, se ainda aperta; dos duzentos exercícios diferentes, tempo, tempo pra eles, tem?

Telegrama, talvez, contando breve: do coração - entorpeceu-se, bate, parou?

Onde pousa, onde, a casa, que planeta, esquina, rua?

Que oceano lhe alcança, quantas ondas fustigando corpo, apagando marcas, pegadas, passos; qual cor, a areia; quantos raios diários castigando pele, dourando ombros, curtindo couro?

Quem lhe ama, hoje? Quem agora ama? Quantas, quais, as paixões da hora?
Quais, os sonhos? Que canções ouve? Que palavras novas aprendeu? Que caminho, rota, destino, para o ano?

Só para dizer.
Por acalmar, repartir, compartilhar, dividir, somar, confortar, arrematar com linha de seda.

Só para não se perder. De vista. De vez.

27.12.08

Demolição



Não há como dizer em meia-palavra. E nem meio som, meio sono, meia alegria, meio sonho. Era noite recém-nascida, meia-luz. Era uma vereda, uma picada, atalho. Pra morte. Qualquer um, sã consciência, o saberia. Nem quis saber, que consciência sã não tinha, e foi, corredor polonês, olhos de lince correndo a passagem, cobras e lagartos preparando o bote. Passou. Sem remo. Lenitivo a tiracolo, passo aprumado, ligeiro, o comprido do bar até a mesa, o povo de sempre, o socorro, acolhida. Tirou o adivinhão do bolso, banco de alvenaria, pernas balançando, nada à vontade.
Um, dois goles, um, dois copos, na entrada. À porta, olhos fixos, nada, ninguém, tanta, tanta gente. Bêbados, bêbadas, rapazes, moças, alegres. Uma, duas garrafas. Um aviso, distância sem fim até o balcão. O balcão do bar, o olhar, sorriso, risos iluminando a noite, luzes ofuscando em torno, tudo o mais sumindo, fugindo, passo da eternidade, portal do paraíso, divina comédia, inversão do percurso. Tanta, tanta luz naquela noite longe, naquele bar, olho no olho, riso no riso, dedos e panos, tanta promessa, tanta ventura, tanta alegria, tão pouco tempo e mais ninguém, mais nada, nem mais sons fora, círculo invisível, halo fosforescente, invólucro, crisálida, metamorfose.

Encanto.

Hiato.

A estrada nunca tem fim.
Uma lágrima e uma lembrança.

Inda ontem passou por lá. Na calçada, uns tijolos de demolição.
Nem mesmo o bar existe mais.

22.12.08

EsperAção


Se fosse tirar férias, escreveria bilhete, nota, carta, aviso de despedida, que não me ausento sem adeus, tchau, ’té mais. Não é o caso. Nada de férias, veraneio. Como não os verão - férias e veraneio - trocentos e vinte e sete zilhões de brasileiros, algo mais, algo menos, trabalhando janeiro sol e chuva. E nem verão país melhor, país nenhum, nenhum verão, tão logo, talvez mais tarde, com as recusas a velar a esperança; negação terminante a fazê-lo.
Ano de 2009: dois mais nove, nove fora, dois. Reza o tarot: o arcano da Sacerdotisa, o príncipio feminino, receptividade, mistério, intuição. Ainda, a dualidade, claro. Por outra, dois mais nove, nove dentro, onze: o arcano da Força, o domínio sobre o leão, a claridade solar.
Portanto, ou por nada a ver, doladodecá tudo será talvez. Que talvez eu parta, talvez fique, talvez mude de endereço, talvez fique, talvez passe, talvez fique. E talvez nem case nem compre uma bicicleta. De certo mesmo, nadinha além da tal i-n-d-e-f-i-n-i-ç-ã-o, incômoda como bem sabe sempre ser. Ao fim e ao cabo, tudo se iluminará, diz A Força. Caso não, o que não tiver remédio, remediado estará – costume de dizer de dona Nica, grande pessoa (cacófato à parte) – e o jeito vai ser esperar com Capinam. Ou ir capinando, arando, semeando, regando, preparando a colheita. Plantando o jardim, com o Cândido de Voltaire.
Em razão de mais trabalho agora, pois, digo 'té ano que vem. E Feliz Natal e Feliz Ano Novo e Feliz Vida!

De presente de fim de ano:

Janeiro Ainda

Te esperei vinte e quatro horas ou mais
de cada dia que eu vivi
Te esperei mais de sete dias por semana
sem um só dia te trair
Te esperei mais de nove meses sem poder parir
Mais de doze meses cada ano,
e te esperava
até um novo século surgir
Te esperei na mesa, te esperei na cama,
Olhando as estrelas te esperei na lama.
Te esperei bebendo,
te esperei calado,
embriagado
e gritando por aí
Te esperei com fome, te esperei sem nome,
Uma vez chorando e outra sem sorrir.
Num barraco
numa esquina,
te esperei pelo mundo,
te esperei sempre assim
num buraco sem fundo
por dentro de mim
Mata derrubada,
Maré poluída,
nas encruzilhadas,
pelas avenidas
Te esperei no sangue, te esperei no mangue,
água derramada,
vida proibida,
hóstia consagrada, pena colorida.
Te esperei de gravata, de luva e sapato
Com todo recato, nua e mal vestida.
Te esperei toda a morte,
te esperei toda a vida
no regato, no esgoto,
Te esperei no mato,
no eclipse lunar, no luar neon,
Na escura solitária, no clarão das luminárias,
No ponto de encontro entre a bela e o monstro,
No raso da Catarina, na profunda dos infernos
Te esperei nos azes, te esperei nos ternos
Te esperei na tua, te esperei na minha
Te esperei sozinho, te esperei sozinha,
Te esperei Clarice, te esperei Virgínia
Te esperei tantos marços e mais fevereiros
Esperei por inteiro e espero ainda
Nesse novo janeiro
Te dar boas vindas.


(José Carlos Capinam)

"Il faut cultiver notre jardin"

(Candide ou L'optimisme - Voltaire)

19.12.08

Sob o vento




Bastaria saber do que paira, do que fica, do que invade quando tudo some. Foram tantas as pontes, léguas, tinta preta no papel, tantas, tantas páginas re-viradas, tantas partidas sem retorno, sem vencedor, tantos tesouros enterrados...

Barcarola, jangada, nau, tantos mares, tempo, tempos, anos no azul, perdendo-se no azul.

Bastaria uma bandeira. A bujarrona içada onde nunca dantes.
A mensagem na garrafa recolhida, no rum, no naufrágio, no baú, nos escombros, destroços, dobrões, na ilha.

Alvíssaras, espera ainda. Do fim do mundo. Varrendo nuvens, dissipando o cinza, o temporal.

Estivesse chovendo, água molhando a areia, escorrendo no coqueiral, lavando a madrugada da ressaca - lua cheia em marés de janeiro devastando a costa.

Estivesse dormindo o vento, sol prateando a calma amanhecida do mar.

Estivesse desperta, viva. Acreditasse, ao menos, e saberia.

E bastaria saber do aceno antes da trombeta anunciando a chegada do derradeiro anjo da morte.



.

15.12.08

Dentro do meu cansaço




É claro que dentro do meu cansaço não cabe ninguém. Arrumo meu mosaico de ladrilhos do tempo. Pintei ainda há pouco as persianas, de ocre, espremi laranjas, espantei o cão, lambi o pires do gato fujão, renovei a porção de ração do rato que deixa migalhas de pão misturadas ao que ficou dos pelos do gato na grama, às marcas das patas na terra.
A semana mal começou, vem logo o natal natal das crianças, da estrela guia e do peru de fora, que não tem bico, então não fala, aí não ouço, não ouço ele nem o guiné-galinha d’angola e nem pavão, glu, leó, tôfraco, nem ouço o jingle bells a toda altura na casa do vizinho da direita, de direita, melhor dizendo, só pode, o fdp, que me desperta instintos vis, mas aprendi mandamentos - não matarás-roubarás-fornicarás-cobiçarás - aí fecho as portas, as janelas, ligo o rádio alto, bem alto, não resisto e vou até o portão e vejo que o bar fechou, e não posso matá-lo, o vizinho, nem devo, no fundo nem quero, que tenho piedade, infinita piedade, desesperada piedade, dele, dos insetos, lagartixas, sapos, gatos-de-rua, gentes-sós. De barata é que não, corro léguas quando voam, repulsivas, disparo até o armário onde esperam as havaianas, lanço mão do baygon, do detefon, do on disponível, descarrego nelas minha ira, asco, pavor, respiro aliviada até o acesso da tosse alérgica e me refaço. E volto à semana que mal começou, e estando o bar fechado, abro o vinho, bom mas da promoção, que aguardava o fim da montagem do mosaico. Não pensei que o acabaria tão logo, o mosaico. Há que começar outro, urgente, que muitos vinhos não há e o natal natal dista uma semana de agora e preciso fazer coisas, muitas coisas até lá.
Falta zarcão na grade, a ferrugem vai comer tudo, senão. A maresia perto faz dessas coisas. Como faço coisas, muitas coisas, também eu, todo o tempo, o tempo todo, pra evitar a ferrugem, a gordura abdominal, a angústia, o tédio. Faço muito, que não quero pensar muito, não quero sentir nada, nem posso, nem devo, e já nem lembro mais como é. Por tudo isso não tenho e nem quero tempo, e canso. Que dentro do meu cansaço não cabe ninguém.

8.12.08

As tintas da narrativa



Sentei-me, na ante-sala do salão de beleza, esperando o tempo sem fim do cabelereiro e observei a moça à minha frente.
Pintou de preto as unhas e a manicure quis adivinhar: - cores fortes, pessoas determinadas, né?
Nada respondeu com palavras. Um meio sorriso, um olhar veloz, ambíguo, de assentimento ou discordância. Vai saber.
Hesitou. Contou um pouco, então, se bem que não assim. Em todo caso:

_ Determinação não era a tônica do momento, mas a necessidade primeira, que desde a opção pelo exorcismo da derradeira dor, desde a decisão pelo entorpecimento, tudo ia transcorrendo moroso, sem vontade. Decisão só esboçada, nenhuma determinação. Até o momento em que a última insônia lhe trouxe as respostas. Então quis. Quis muito. Quis com toda a força os sonhos que restavam e o retorno aos projetos adiados. Quis distância, distanciamento, observação, silêncio. Renascimento. Quis o sepultamento de todas as perguntas vãs, das dúvidas caladas, das mágoas silenciosas. Quis libertação. E limpou casa, alma e vida. E desfez-se de tudo o que sobrava. E desprendeu-se de teias, tralhas, supérfluos. E tirou o pó das lembranças boas e guardou-as. Com alguma solenidade. Com muito zelo. Então, leve, pôde voltar a caminhar, com mais Luz, mais Amor, mais Alegria.

No caminho iniciado - percebi -, indiferença aparente, só: o jogo muscular que pratica, com que finge e filtra, interpreta, imita, ao fim denuncia a emoção que escorre, desautorizada, no gesto e no olhar que sobram na distração, no riso que esquece de guardar, na quietude, até, na ausência mesma de reação.

Eu a vi partir. Ouvi sua voz grave e seu silêncio e seus passos firmes e vi suas unhas negras e vi os olhares que a acompanharam, sem os decifrar.
Não se deteve. Seguiu, segredando em olhares, que a distância entre o impossível e o possível é do tamanho do querer. Nada mais.

Não contracenei. Fiquei pensando sobre a sua narrativa, que lembrou-me outra, construída em torno de um enredo banal: a velha seqüência sedução-traição-abandono contrariando as previsões da cartomante, as promessas de nova esperança, presentes do universo, prêmio, merecimento e tal e tal. Desta, havia eu apreciado as cores.

Não me compadeci em nenhum dos casos, confesso. Mais me importava ouvir tais histórias. Muito mais coloridas, instigantes, sedutoras, do que a vida às vezes é capaz de ser. Mesmo quando tecidas a partir de enredos banais.

4.12.08

“Serás outra vez montanha”.

Cigarros de filtro amarelo. Sons na vitrola. Trinta anos. Quinze anos. Tantos anos...
Algo volta, alguém volta. Alguém sempre volta aos lugares onde um dia foi feliz: “a los viejos sitios donde amó la vida”. Ao fundo de si. Às sementes do loureiro no quintal. Ao quintal com pés de sonho.
Partir, voltar. A mesma reta. As mesmas curvas. A mesma impressão do que não foi quando já se foi. A mesma vontade de outrora. Nós, outros. Nosotros, nunca mais. Como nunca mais ouvirão o seu cantar, quando o meu, contigo aprendi. E ainda ecoam, o meu e o teu, pungentes.
Um nome esquecido nas quebradas, inteiras, bipartidas, nas partidas, nas perdas - porque sempre perdemos, aqui. Que ganhamos além, na longa estrada, onde esperamos eternamente os ciganos passarem com medalhas e adivinhações. Decifrando linhas, da vida, da sorte, do amor, de amores.
Vida vã, vida sã, vida insana, vida recorrente, efêmera, eterna em um minuto. Soçobro. De ti sobra, só, lembrança, indelével nos matizes de todos os entardeceres onde caibam devaneios, nostalgias e anúncios de acordes para a madrugada. Que contará a triste história das estátuas – como na canção – que não podem sair juntas nunca. Que não riem porque nunca tiveram infância.
Madrugada em que, silencioso e ausente, sempre estará: ‘sensível como a chuva e profundo como a Paz’.

1.12.08

Rol de coisas, rol de sensações



Na mala de mão, um litro de vinho rosado, um de soro antiofídico: ainda que
um pouco bêbada, desenvenenada para a pequena morte, para a grande fuga.
Guardada pra outra vida, caso haja outra, aquela esperança.
Nessa, desesperança nenhuma.
Não muito, além de certo descaso, uma falta de tintas, uma falta de sonhos, uma falta de euforia. Uma canseira. Indiferença. Pingos de tédio, calor. Amolecimento, mormaço. Um sono interrompido. Um sonho adiado. Uma drumondiana ausência assimilada.
Nenhuma aposta. Preparativos de viagem.
Adeuses.

a vida é assoviar

26.11.08

Sete vidas - a primeira




Um grande quintal ou o que parecia ser um a uns olhos de criança. Conjuntos de dois elementos, conjuntos unitários: dois abacateiros, um pinheiro, duas cirigueleiras, uma caramboleira, duas goiabeiras, um coqueiro, dois pés de pinha – fruta-de-conde, alhures – e uma mangueira.
Radiografia da pré-escalada: dos abacateiros, distância. Enganadores: galhos grossos porém fracos, propícios às quedas. Pinheiro espinhento, alto demais, enfeite fora de época, brasão, da família sem nobreza nem título. Cirigueleiras meio-termo, pra confiar desconfiando, lastro para o assento, gosto bom de madureza, resina curativa, sombra parca. Caramboleira reinando absoluta entre todas, copa alta descendente, saia arrastando minúsculas flores roxas pela terra, sombra para os ‘cozinhados’ de feijão verde, fogo de carvão, panela de barro, rendez-vous preferido dos pigmeus vizinhos. Goiabeiras pra balanço, aventura nos galhos mais altos, as melhores de subir, envergando sem quebrar, alojando marimbondos traiçoeiros entre folhas, fonte de chás para dor de barriga, bicho-da-goiaba, doce, geléia, suco, dinheiro minguado a mais na bodega. Distância do coqueiro, inacessível, amaldiçoado pela quebra do braço do irmão, e ainda assim, pai das cocadas do lanche.
Casa dos soldadinhos, os besouros zebrados, pinheiras de doçura e longa espera pelo fruto.
No fundo, vela içada, navio singrando mares em dias de ventania, a mangueira, gigante oscilando, lençol branco amarrado no mais alto dos seus mastros.

Era uma selva, uma floresta, um bosque, um reino, o quintal. No pórtico de entrada, o jardim. Rosais pintando tardes vagas em branco, vermelho-sangue, amarelo: príncipe negro, la france, santa terezinha, rosa-cacho - uns nomes delas. E mais perpétuas, cristas-de-galo, boa-noite, bom-dia, brincos-de-princesa, grama orelha-de-rato atapetando a passagem onde dormia o cavalo, esbelto, veloz, companheiro também arisco, encantado na mesma vara de tirar mangas. Tudo em dez metros de fundo, disseram. Em sei lá quantos de lado.

Lembro de um vôo, uma vez. Ciriguelas maduras, grito de “almoçar!” vindo da cozinha, tábua no chão, ponta de prego esperando o pouso, rasgando a carne, o pé sangrando, o choro miúdo, a carreira, hospital, vacina. Nada, nada. Pior o resguardo, longe dali, das folhas, sombras, viagens, segredos em língua de planta. Resguardo mais pra castigo, que logo acabou, com tudo de novo, susto e carreira, vidinha boa sem aperreio.

Talvez porque assim transcorreu a primeira das sete vidas, eu tenha hoje tanta pena de infância sem quintal, sem planta, sem sombra, sem cozinhado, sem cavalo-de-pau...

24.11.08

o meio do mundo




Caí no meio do mundo.
Um precipício sem amortecimento, bombeiros, cama elástica.
Barulhento, o meio do mundo. Gralhas, araras, pardais, corvos, gaviões, a fauna de penas em gritaria incessante, desabalada em vôo vertiginoso. Urubus silenciosos planando.
Caí e corri para a orla do mundo.
Deixando o piche da cidade - poeira marrom na estrada de saída - vacas, galinhas, touros, raposas e cobras atravancando a passagem. Impassível indiferença ziguezagueando entre os uns e os outros.
Narinas acesas pra o perigo e para o mato queimado.
É onde agora estou, na orla. Solos de sopro, grão a grão, me arrebatam sentidos e ouvidos mas continuo atenta. Apenada cumprindo sentença e rotina. Arrasto correntes à noite, abro portas que rangem à minha passagem, tateio as paredes, ásperas, na casa de reboco, na casa de ferreiro sem espetos perfurantes, sem bigornas, sem maçarico.
Entidades de rua me visitam em sonho. Acordo arrepiada, de pavor. E rezo, acendo luzes e velas. Cerco-me dos antepassados, invoco-os, peço por eles, a eles agradeço.
Chegaram eles todos também há pouco do meio mundo, onde bons e maus estão: bons que são maus, maus que são bons. De onde brota o princípio único, o Tao, circundando opostos, complementares.
Da orla do mundo ao meio, outro, caminho de grama, de pedras, pirilampos ladeando arbustos: pequenas lanternas intermitentes, ora enchendo de claridade as sombras.

Caí no meio do mundo. Depois parti, avisem a quem quiser saber. Caí até quando. Por ora não volto mais.

20.11.08

A coragem é translúcida


Salva-vidas ambíguo, impele ao despenhadeiro, instiga ao mergulho, amortiza a queda - a coragem.
Coragem para a partida. Para o retorno. Para a fuga mesma, mesma fuga. Para a troca de dores. Sabendo-o. Querendo-as.
Para a nudez. A queima das máscaras. A revelação. Do belo, feio, sagrado, profano, humano, divino. Do inteiro: deleite e pavor.
Coragem.
Na voz entre silêncios. No sangue das feridas revolvidas. Na recusa ao tédio e à morte e à covardia. No amar.
Coragem. No sofrer. E amar de novo. E mais.
Coragem para retirar-se. Recolher-se. Repartir-se. Refazer-se.
Para atravessar o deserto. A floresta. A noite. O dia que vem.
Para andar com o medo, sem vencido ou vencedor.
Para andar, enfim.
Pelo único caminho possível.
Até o fim do pântano, do lodo, das reticências...
Que - água pura - a coragem é translúcida.

15.11.08

A noite em que perdi a cabeça



A hidra de Lerna, pra quem tantas cabeças não bastam, devorou a minha.
Eu fiquei assim: muda, cega, surda, desmiolada. E sem dor.
Acordei no meio da noite. Nem era meio, mas começo de outro dia, uma da manhã, pouco mais, pouco menos, uma imagem biliar ainda na memória do fígado, na falta do hipocampo. Comprimidos revestidos, alcachofra composta e - repito - nenhuma dor.
Um pesadelo. Um corpo ferido. Sangue. Uma mulher. Brilho. Prata. Agonia. Sobrevôos na cidade. Noite. Escuridão. Medo. Medo. Medo.
Agora já passou. Luz na sala. Tela. Olhos vermelhos sobre o peito, colados pouco acima e em cima do coração ancião. Mula. Sem cabeça.
Apelei a Héracles, com sinais de fumaça. Herói, semideus, flechas envenenadas, operário antes da CLT, doze trabalhos como doze são os meses do ano (e eu de novo com a mania de números e associações sem fundamento científico ou argumento válido).
Veio ele e matou a hidra. Nem apareceu uma maior, nem me renasceu a cabeça.
Assim é melhor. Já posso seguir por aí, cega, surda, muda, dormente. Chamará um pouco de atenção aquele corpo que é o meu, andando a esmo, com olhares de estranhamento por sobre si. Imagino, não verei. Logo, a idéia, chegada agorinha do baixo ventre, não me incomoda. Curiosos se perguntarão o porquê. Não me importarei muito, já disse, pois que não sinto dor.
Mais difícil e demorado será amanhecer sem bocejar ou coçar os olhos.

31.10.08

1) Mosto. 2) Fermentação.




E ele não a conhece, não sabe do que é capaz: uma alma boa, tão boa, tão má. Deixou cair no vazio as perguntas que ele porventura faria, foi evaporando na medida certa da aproximação do calorão de janeiro que ainda transformaria em fantasma a cidade de plebeus que eram, todos. E falou pelos cotovelos, joelhos e narinas, enquanto respirava o que cala e asfixia.

Não era pra ser assim, não era pra ser assim.

Começo de novo:
_ Era uma vez um reino (Foi. Não foi. Um quase reino, digamos)...

E o aspirante ao trono ficou nu frente à turba atônita. E a rainha lançou-se em seu socorro, envolveu-o com seu manto, véus e cabelos, retirou-o do alcance dos olhares devoradores das feras dos súditos.
Mas não conseguiu calar o que lhe roía por dentro, bem que tendo tentado. Gritava, partia de si quando não queria nunca nada revelar, e ouvidos sedentos do alheio tragavam seus segredos, e ela, de natureza contida, reservada, pareceu inconfidente aos olhos que não a reconheciam.
Quebrou-se a maldição. Quebrou-se o encanto.
Mandou bordar em letras de ouro, na faixa sobre o manto real: “quem não sabe o que procura não reconhece quando encontra”. Sabia. Não sabia.
Se partisse, o pensamento a seguiria até os confins da terra, no mergulho, no vulcão extinto em Reykjavik, na Terra do Fogo, em Gandermélia e Lilliput, em Plutão, em lugar nenhum, ele iria, é certo que sim.
Quedou-se dilacerada; silenciosa; vazia; vingativa: Lilith. Não foram felizes para sempre. Nunca teriam sido.
Rei morto, rei posto. O rei morreu, viva o rei! Viva a rainha triste! Cortem a cabeça da rainha!
E eis a rainha, ressurrecta. Que viveu feliz para sempre.

E ele não a conhece nem sabe de toda a crueza das horas geladas no meio do calor dos diabos que invade o cubículo onde se esconde da vastidão de espaços para que nele caiba menos solidão. Cu-bí-cu-lo. Catedral. Na vitrola os versinhos musicados, bem baratinhos, do cantor pop de quem gosta, que ele desdenha, como desdenha outras cançonetas emepêbê, o mundinho dos assalariados, sonhos de amores felizes, o manifesto do Partido, a canção, francesa: “il n’y a pas d’amour heureux” (não existe amor feliz). É contraditório, ele também, com o seu desdém e impressões sobre os outros, tão menores, tão limitados, tão pouco espelho-imagem, reflexo seu(dele)...

Mas na verdade não se importa, nem liga, não faz a menor diferença, pois já tantas vezes o matou, carpiu, enterrou, rezou.

O tempo, veio o tempo. Apesar do tempo consumido nas incontáveis vezes em que o esqueceu, havia descoberto, renitente, ser ainda capaz de amar. Sim, - pasme! - ainda capaz de amar.

21.10.08

"Quando a ciência entrar em teu coração e a sabedoria for doce em tua alma, pede e te será dado..."


O sete

Sete vidas, pois, me foram concedidas, como aos gatos.
E com tantos setes no caminho, procurei para eles, como todo humano necessita, um significado. Não que faça necessariamente sentido. A vida não precisa fazer sentido. Nós é que não sabemos viver muito bem sem ele.

Então encontrei em livros as informações, se não verdadeiras, no mínimo curiosas:

- No tarot, o Sete é o arcano do Carro, Carroça ou ainda Triunfo, a dizer:

Nas quatro colunas que sustentam o dossel, os quatro elementos: terra, ar, água e fogo. Os cavalos puxando o carro para direções diferentes, evocam o dual no homem, obrigando-o a tomar com firmeza as rédeas e controlá-los.

A coroa de ouro representa a luz na mente, o equilíbrio pela inteligência e sabedoria.

O carro retrata a submissão dos elementos da natureza e da matéria ao talento e a inteligência do homem.

E ainda:

"Relacionado em princípio com Zain (sétima letra do alfabeto hebreu, que corresponde ao nosso Z), denuncia uma mobilidade e inquietude que tem a ver com todo deslocamento ou ação ziguezagueante, veloz. Seu aspecto oracular é associado às mudanças provocadas pela palavra: elogios, calúnias, difusão da obra, boas ou más notícias".

Soma do 3 e 4 (céu e terra)

O número 7 representa Atmãm, o dono da carruagem, o carro de Ezequiel, a Mercavah Celeste, o Ken dos Taoistas, a Montanha, o rosto humano feito a "imagem e semelhança de Deus". Sê o número 7 for representado por um X, temos então o nome cabalístico de Zain, que na realização deste número, representará o homem que uniu o Mundo Divino com o Mundo Humano. Daí a montanha ser o palco da realização espiritual de vários seres que vieram à terra cumprir esta missão, que como eremitas, Manus, Avataras, caminhantes, peregrinos, mostraram possuir a luz do conhecimento e da sabedoria das idades: "Senhores de si mesmo e de seu próprio destino".

Sete é o número perfeito, que na representação geométrica pode ser simbolizado por um triângulo sob o quadrado (espírito anima a matéria), pelas casinhas que as crianças fazem em seus primeiros desenhos, das construções de pirâmedes, etc. Platão dizia: No sétimo dia foi criada a "alma do mundo": (Adam Kadmon).


Conclusão: o desafio do Sete de nascimento seria tomar as rédeas do destino em suas mãos. Como o de todos os nascidos sob as emanações de todos os outros arcanos.
Nada, nada de novo.

(Citações: Haitch, E. A Sabedoria do Tarot. 1995, Pensamento, São Paulo; especial Tarot Editora Três; sítios web)

19.10.08

Sete vidas - O início




Nasci num feriado, sem hospital, sem obstetra. Minha mãe passava da idade de ter filhos, já aos 41, depois de sete. O primeiro partiu em criança, não o conhecemos. O que fez com que eu me tornasse a sétima. Eu viria a nascer em setembro, mês nove com sete no nome. No dia 7, no ano de 1967. Caso raro de bebê pós-maturo ou mais provavelmente erro de cálculo, nasci no décimo mês da gestação. A parteira, dona Lindalva, me fez ver a luz. E à minha mãe, quase as trevas, não por maldade - pobre dona Lindalva! Antes por ignorância. O fato é que a mãe foi levada ao hospital e depois de cuidada e desenganada pelo médico, o pai tomou as providências. Chamou o padre, para a extrema-unção. Veio o médico, preenchia o atestado de óbito e perguntou a meu pai o nome dela. Ela milagrosamente abriu os olhos e num quase sussurro respondeu - conto como ouvi, repetidas vezes em casa. Ressuscitada, pois, desde então passou a se dar primeiro os parabéns a cada meu aniversário, posto que ali teria nascido outra vez. E a pedir também os parabéns a todos os que vinham me felicitar naquele dia.
Assim foi o início da primeira vida.