26.5.09

Seguir tem sublime sucesso



* "[...] A perseverança é favorável. Nenhuma culpa" - leu, esperando o sono chegar e ele não vinha.

Deixou acesa a ponta do cigarro no cinzeiro, a fumaça empesteando a sala, ora em espirais voláteis a caminho da lâmpada eternamente acesa, ora em círculos perfeitos buscando a janela, como ocorre quando alguém está pensando em nós.
Ela limparia compulsivamente os cinzeiros, todos eles, repetidas vezes, e ele olharia com atenção para ver se descobria onde estavam as pernas daqueles cinzeiros que sumiam e nunca voltavam, indo parar sozinhos sobre a pia da cozinha, sempre limpos, sempre molhados. Cinzeiros adestrados.

Os sapatos e sandálias se espalhavam pela varanda, no corredor, no banheiro. Decerto não causariam nenhuma catástrofe assim, fora do lugar. Então por que ela se importava?
A louça suja sobre a pia, a roupa amassada sobre a cama, a porta da geladeira apenas encostada, a luz do banheiro acesa e ela já não tinha mais ataques de nervos, já aceitava a desordem como parte da nova ordem da casa, já não achava que interferiria no destino da humanidade.

Ele queria que ela esquecesse as badaladas da meia-noite e apurasse os ouvidos para os acordes da madrugada anunciada.
Ele queria que ela deixasse de pensar em Reykjavik apenas como o acesso ao caminho para o centro da terra.
Ele queria que ela despisse suas peles e armaduras e couraças, nem tão hermética, nem tão teimosa. Não era muito. De vez em quando, que criasse asas.

Explicou-lhe a síncopa do samba, e ela fez que entendeu.
E lhe falou das capitais de todos os países do mundo. E sobre cada uma delas espetava um alfinete de cabeça colorida, no mapa, sinalizando por onde já haviam passado.
E ela ria.
E apertava os olhos.

E os anos, como bem sabem fazer, transcorreram, lépidos mas não fagueiros.

Então nada mais estava lá.
Desaparecera a cama, a casa, a cidade.
Desapareceram os livros, os discos, os instrumentos.
Desapareceram os olhos infantis.

E ele acordou tateando no escuro, ofegante, coração aos pulos, mãos apressadas percorrendo lençóis.
Medo.
Aflição.
Alívio.

E cuidado. E silêncio. Para não acordá-la, que nunca mais queria acordá-la.

Só para despertar à noite e ter certeza que ela ainda estava lá.

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*do livro das mutações, de R. Wilhelm

14.5.09

O Palácio do Dragão




Volto ao palácio do dragão, palco do nosso banquete primeiro. Estávamos então famintos, embora saciados. Éramos ainda estranhos um para o outro ou quase, nada além de uma nova ilusão, cães matinais, apenas um rapaz ciumento, divina dama. Ainda das árvores aos postes, as bandeirinhas, papel de seda, origami de formas várias; Maria dos Santos sem saber se hoje é noite de São João me olha com olhos redondos negros saltados e nada responde - olhar de interrogatório, de interrogação.
Ouço a voz dos dois: Rispidus, Docilis. São dois cães gêmeos, da mesma ninhada, às vezes se fundem em um e assim me confundem sempre mais, surpreendentes sempre que penso ser impossível que me confundam depois que me saltaram sobre os ombros quase me dilacerando a garganta, enfiando suas garras abaixo, rasgando o peito, raspando o coração - filete, fino fio de sangue, vertente mal cicatrizada - até se mostrarem enfim confiantes, finalmente amistosos, afetuosos até.
Impossível não sentir o cheiro da grama cortada da terra revolvida na primeira chuva, embora não chova agora nem chovesse naquele fim de manhã em que me enlaçou, estreitou-me, segredou-me em sussurros seu medo, a dor, a morte, a estupefação, o dia em que se sentiu absolutamente só e dispensável ao mundo e à vida.
Discutimos os novos rumos da política do café com leite, o sexo do band leader dos rolling stones, meu total desconhecimento da língua inglesa, da arte gótica, da física quântica, de sustenidos e bemóis. Sua ignorância completa do movimento das marés, dos signos astrológicos, do segundo círculo do poder, da conjugação do verbo être.
No saguão do palácio do dragão, tudo isso em menos de meia hora, até a despedida final, até logo, nunca mais nos vemos, deixa assim, quero sim, quero não, bandeirolas ao vento, dança do papel nacarado, vermelho-sangue, fúcsia, salmão.
Até o dia dois, o dia três, o dia quatro, os toques ininterruptos do telefone, acordes dissonantes, coro de sapos, dois perdidos numa noite longa, abat-jour lilás, bachianas brasileiras, tremendão, inferno astral, orgasmos múltiplos e o tempo infinito de um minuto em frente ao palácio do dragão.

5.5.09

Ritual


Um belo dia, não era belo. Um dia aí, qualquer, passado, tinha resolvido queimar as cartas, todas, todas. Cartas de baralho cigano, cartas de tarot. E cartas de amor. Chamas azuis, amarelas, vermelhas, consumindo o papel, queimando as manchas de sangue e perfume.
No dia, cinza porque chuvoso, chegaram os cupins, voando, famintos, infestando a casa. A mãe dizia: formiga quando quer se perder cria asas. Os cupins querem se encontrar, decerto, quando criam as suas. Em usando pedra de amolar, capaz de roerem até madeira de lei, na porta da frente. Pelo sim, pelo não, melhor não esperar.

Meio ao dilúvio, preparou o capote. Enfrentou as águas inclementes que invadiam o planeta até chegar no primeiro banco de areia, 12 km mais tarde, 20 minutos mais à frente, onde viu o canal. Subindo, deteve-se no meio da ponte, medindo a altura do salto. Precipitou-se, o fôlego curto de fumaça, braços e pernas obedecendo, até a margem. E os olhos divisando a luz ao longe, nada mais que neon, imitação barata da aurora sonhada desde o início dos tempos.

Que fôra fazer no pântano? Buscava o quê, além de fugir dos cupins?
Meia volta sobre os calcanhares, sobre a ponte, pelo asfalto, até o posto primeiro, bainhas e mangas arregaçadas.
Até o posto primeiro, de onde viu voarem zunindo pela janela as tralhas devedoras do lixo há três ou mais décadas.
Coisas, trecos, badulaques, deixaram vazios quatro cantos. Partiram as traças e os esqueletos do armário e a ânfora do vinho daquela noite, vinagre do amanhã, no mesmo arremesso.

Lustrou o pinho do rés do chão. Verteu na banheira sueca essência de lavanda. Dispôs na sala de banho os frascos e incensários, flor de bergamota e jasmim.

Pôs a mesa. Vidros coloridos, licores, chocolate, amêndoa, hortelã, framboesa, amora, groselha, ananás. Bananas, goiabas, carambolas, ciriguelas, mangabas e cajus. Os romances clássicos, os regionais. Calados, sobre o criado, mudo também.

Na vitrola, os címbalos e a rabeca.

Preparou o banquete sob a lua crescente, meio às mariposas, media-luz, meio-medo, meia-alegria.
Na rocha sob o frontão.
E convocou as outras para o Sabá.

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"Um lugar deve existir
Uma espécie de bazar
Onde os sonhos extraviados
Vão parar
Entre escadas que fogem dos pés
E relógios que rodam pra trás"


(A moça do sonho; Chico/Edu Lobo)