Então não conseguia mais andar. A planta do pé tocando o solo irradiava dos dedos à base da coluna vertebral o choque, depois dor, depois enrijecimento, depois espasmo, depois dor, depois choque. Nem padiola, maca, raio x, injeção, nem maravilha curativa, remédio que quando não cura mata, quando não cura a doença mata o sujeito, nem o homem da mala anunciando catuaba composta, erva milagrosa, nem cobra nem jacaré. Minto. Cobra sim, que foi ela a responsável pelo que sucedeu, por tudo, aliás, desde o início dos tempos - rezam as Escrituras.
Era uma beleza, o lugar: beira-mar, beira-rio. Chegando apressada, pacotes de supermercado, carregando, sacos de gelo, pesando, e sssss, lá vinha, ligeira, serpenteando, na porta de entrada - em sua função, claro, serpente que era, de nascença.
Nem se pára, hora dessas, pra ver se é peçonhento ou não o bicho - cabeça triangular ou arredondada, escamas brilhantes e tal -, e assim, reativa, sapecou-lhe em cima o saco mais pesado, o de gelo, imobilizando-a, e no movimento brusco, paralisou-se também, nervo ciático pinçado, talvez, disseram. Dor. À mão chegaram um rodo e uma rede, dessas de limpar piscina, e não soube o que fazer nem com um nem com a outra. Acudiram, então, acorreram, matando o infeliz pequeno réptil a golpes de rodo. O pobre. Uma pena.
Passos lentos, subindo escadas até o quarto, até a varanda, de onde ondas batendo, de onde milhares de estrelas no céu e primeiros fogos de artifício anunciando o ano que nasceria dentro de quatro horas.
Velho vestido branco, tentou driblar a dor e concentrar novas esperanças, desejos, sonhos, resoluções. Vieram os drinques, vodka/suco de laranja, vinho, espumante e cada passo era um martírio.
Romaria até a fogueira, gente, festa, abraços, ano novo, ano velho, luzes dos fogos, risos, mais abraços, ondas lambendo os pés. E fim. Era já outro ano.
Vieram os analgésicos, antiinflamatórios, comprimidos, sublinguais, corticóides... E viria outro dia, que foi pior, e mais um, pior ainda, e no terceiro, finalmente, algum alívio, e o quarto dia, enfim, com a hora de pegar a estrada e voltar para casa, procurar um especialista, tentar a cura para a dor, já melhorada, ainda incômoda, ainda limitante.
O amigo sentenciou: isso aí na coluna é do seu medo de seguir em frente.
Com ou sem medo, seguiria - decisão de ano novo - afastando do caminho o que rasteja, sem que necessário seja sua aniquilação. Que no ano da Força, da abundância, da colheita, mesmo sem saber direito onde se vai chegar, é imperativo prosseguir.
Com ou sem dor, de pé.
"
maré cheia
a doença traz a dor e a cura
e semeia
grãos de resplendor
na loucura"
(Pérolas aos poucos - Zé Miguel Wisnik e Paulo Neves)
Publicado no
embrulhandoopeixe, em 10/01/2009.