30.1.09

Causa & conseqüência

Um pai, uma mãe, quatro irmãos, duas irmãs, me foram dados.
Uma neta, uma filha.
Uma infância verde, de quintal cheirando a terra chovida.
Vida adulta conturbada, maturidade apaziguada.
Uns poucos e bons amigos – tão poucos, tão bons!
Amores, que passaram, que ficaram, que estarão.

Uma amiga-irmã e uma irmã-amiga, a morte me levou. Guardei seus nomes, retratos, imagens, muito antes da despedida. Foi-se também a avó, das bonecas de pano. Das colchas de retalho. Crochê. Tricô. Agasalho.

Uns sonhos moram em mim e me acalentam. Cabem em uma cidade - que não essa - beira-mar, beira-rio: cadeira de balanço na varanda, fim de tarde, cheiro de café no fogo, pão quentinho. Um pouco de frio.

Um coração espaçoso me restou e me acompanha, cada dia, todo dia.
É no vão dos tesouros que ele abriga,
onde - desde sempre - a solidão habita.





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25.1.09

Coisas do verão



Era talvez o momento errado. Já havia escolhido o bloco, do eu sozinho. Houvera a reconciliação consigo e com a casa e com a cama e com a noite, a madrugada, a solidão. E aconteceu de ser lua cheia e de ser madrugada e duns frêmitos e dumas idéias e dumas vontades e dumas conjunções astrais e de uma desesperança e da instalação da desilusão, da desistência, e do por que não, que não estou fazendo nada e nem você também? E assim foi, uns meses, um calor, um aconchego, uma companhia. Mas, onde, a falta de chão sob os pés? Onde, as estrelas e o céu e a nova estação?
Pondo na balança e na peneira, tinha que dar a decisão. Não por nada, que não faltavam a diversão e o riso e a alegria e mais. Antes por uns detalhes bobos, tão bobos, tão detalhes, por que tanto pesavam? Uma preocupação maior que o devido com o próprio umbigo, uma falta de modos à mesa, uma falta de cuidados, uma insônia intermediária arrastando junto os arredores, uma falta de silêncio, um olhar de esguelha, uns telefonemas misteriosos de madrugada, um excesso de complicações, do nada, açúcar, fumaça, um isso, um aquilo. Uns senões.
Bastantes para a volta ao bloco, que não queria botar na rua, da queda do galho, sem saída e nem ginga pra dar e vender, ouvindo Sampaio, até o ouvido apitar.

Vícios, cada um com o seu: “à chacun, sa merde”, diz o ditado. Além de beber e fumar, a adrenalina – olha só! – engrossava o caldo. Vício em paixão, tem quem diga? Daí não poder conviver bem com a calma, a quietude, o igual-à-maioria-das-gentes-que-conhecia. Daí não querer viver sem paixão. Daí não querer só o possível.
- Então, infeliz, vais morrer sofrendo, em vigorando a tese daquele teu amigo que afirma só ser paixão quando não é correspondida.

Entristeceu-se com o tiro. Lembrou-se do que poderia ter sido e não foi. Pensou no que foi sem ter sido. E a título de consolação me confessou, amigas que somos: - entendo tudo isso, sim, de antes, de agora, que não suportaria mesmo ninguém como eu apaixonada por mim.

Só me restou achar graça. Coisas do verão.

21.1.09

Parar,



sim, há que parar.
Quando o mundo em volta ferve, o sentido se perde, a crença se esvai, o tempo mingua. De ponta-cabeça, plantio involuntário de bananeiras, curral de bichos-carpinteiros, grilos, pulgas percorrendo o espaço posterior das orelhas, o teto indo ao chão, o chão, ao teto... hora de parar.

Sim, parar pode ser sábio.
Parar total, parar geral, parar local e internacional. Parar federal. E institucional, que deveria ser instituído o dia do Paro, como se ensinava no colégio o dia do Fico, para o bem de todos e felicidade geral.
Que contemplação, em pitadas, só faz bem.

Raro ser possível, mas quando, exercer sem dó a arte de deitar na rede, balançar, parar.
Não ir ao extremo com os que fazem da vida um eterno paro. Sim, pois os há. Como também há os do eterno fico, e outros mais de um eterno vou, de um eterno parto (ambigüidade aí inclusa, e trema, também, como queira. Não querendo, não trema, que o freguês ainda tem até 2012, disseram, pra se adaptar).

Parar pode ser de uma ‘utilidade horrível’, como diz meu irmão mais velho. Já sabia desde que pulava o muro da Escola Sebastião Fernandes pra gazear aula em mil novecentos e cocada, no milênio passado. Eu, não ele. Só pra ficar em casa sem fazer absolutamente nada. Tão bom o programa quanto raro, que só acontecia isso quando tinha aula insossa por demais.
Esse tempo era também de balançar em rede, organizando atrás das orelhas o circo de pulgas, botando os bichos-carpinteiros pra carpintar, espantando os grilos da cuca, ainda fresquinha, fresquinha.

Parar é bom. Necessário. Útil. Recomendável.
Uma tarde inteira sem dirigir, sem sair à rua, sem correr, sem caminhar. Uma tarde inteirinha pra fazer do tempo o que bem quiser, botar pingos nos is da dúvida, dormitar, reler, pensar em quem se gosta, devanear. Olhar tempo preparando chuva, bicho voando, folha caindo, passarim cantando, parede, punho de rede, sem usar a p do celular.

Parar é bom quando se pode parar.
Como quase nunca é, pra quem trabalha, a instituição do dia do Paro, em que pese a já absurda quantidade de feriados brasileiros, talvez não seja uma idéia de todo má.

19.1.09

A fonte, o astro, quem importa



Entrei na fonte areada com sabão e enxugada com roupão como na dança de roda. Mergulhei, banhei-me, submergi, emergi, liquefiz-me. Joguei-me nela que não era de ouro, mas de álcool: borbulhante, fermentada, amarela. De alma encharcada, saí, passos incertos, saracoteando, reconhecendo terreno, primeira timidez já meio de banda, povo passando junto, carimbado, menos Mando e Lela e Fabi, prazer em vê-los, caras boas, de tempo bom para trás, de tempo bom pra frente.
Já bem liquefeita, trafegando, desviando d’uns e d'outros aqui ali e acolá, acolá ali e aqui, circulando risos e ois, eis que entra em cena o astro da noite, beca d’oiro, bouquet de lírios na mão, óculos ray-ban na cabeça, colarzão de medalhão, suspiros apaixonados das fãs às promessas cantadas: “eu vou tirar você desse lugar/eu vou levar você pra ficar comigo”.
Ao pé do palco não a vi surgindo entre a platéia, cara de camundongo, em trejeitos e trejeitos e bocas e caras, periguete, vagaba, loira oxigenada.
Olhou demorado, chispas nos olhos, fuzilando, seioláporquê, que talvez devesse ser o contrário o esperado. Ou nem.
Liquefeita que estava, já disse, nem rangi os dentes, nem rosnei, nem grunhi, nem olhei, nem fuzilei, nem retribuí.
Voltei à fonte, goles, banhos, e a noite promete e o som não pára e há a dança e o riso e o povo e o astro, apontando-me, derretendo-se: “você é a ciganinha dona do meu coração"...
Guardei dele, um lírio.
Da noite, o riso. A fonte. A importância de uns. A desimportância de outros.

15.1.09

Saudade do porvir





Tem vez que bate saudade, de tudo, de nada, saudade, só. Saudade, ausência antecipada, nostalgia, melancolia ou que outra coisa for.
Hoje bateu, assim.
Por isso eu queria dormir. Dormir bem baixinho, pra ninguém perceber, sem tosse nem ronco, sonambulismo, insônia intermediária, nada que faça acordar. Dormir, dormir até cansar.
Afundar na cama, na rede, sofá, sei lá. Afundar. Até o pescoço, que quero, enquanto durmo, ainda poder respirar.
Na verdade não sei bem se queria dormir. Antes, não pensar. Parar. Descansar. Talvez morrer, não sei, mas acho que não, que não sei se morrer é ruim ou bom e aí não vale arriscar. E como quem vai não volta, e eu queria muito poder voltar, então melhor adiar.
Me peguei assim, descrente, indignada, com a burrice, a raiva, as solidões, a estupidez humana, a nossa, com as mortes, tantas mortes vãs, aqui e ali e mais lá. Me peguei com as tripas no coração desde o ano que foi, e hoje, ainda que não autorizada, a descrença abriu a porta e entrou, mala na mão, cuia na outra, nenhuma chuva, nenhuma alça, cuia vazia, peito apertado, doendo, doído, pesado. Pensei até em parar de fumar. Como não, quero dormir, então, tão somente. Talvez assim possa sonhar. Com uma manhã nova, um ovo partindo a casca, saindo de dentro a velha fé nas gentes, no amor, no porvir.
Hoje bateu saudade do que falta agora, que é tudo isso aí.
Um tempo em que acreditava. Daí talvez querer dormir, pra fazer um pedaço do tempo morrer, encurtar.
Vai que assim tudo volta amanhã, vai saber.
Mas agora, aqui, amanhã me parece longe, tão longe, que nem sei mesmo se, algum dia, ainda vai chegar.

5.1.09

A cobra, o ano novo, a dor e a cura


Então não conseguia mais andar. A planta do pé tocando o solo irradiava dos dedos à base da coluna vertebral o choque, depois dor, depois enrijecimento, depois espasmo, depois dor, depois choque. Nem padiola, maca, raio x, injeção, nem maravilha curativa, remédio que quando não cura mata, quando não cura a doença mata o sujeito, nem o homem da mala anunciando catuaba composta, erva milagrosa, nem cobra nem jacaré. Minto. Cobra sim, que foi ela a responsável pelo que sucedeu, por tudo, aliás, desde o início dos tempos - rezam as Escrituras.
Era uma beleza, o lugar: beira-mar, beira-rio. Chegando apressada, pacotes de supermercado, carregando, sacos de gelo, pesando, e sssss, lá vinha, ligeira, serpenteando, na porta de entrada - em sua função, claro, serpente que era, de nascença.
Nem se pára, hora dessas, pra ver se é peçonhento ou não o bicho - cabeça triangular ou arredondada, escamas brilhantes e tal -, e assim, reativa, sapecou-lhe em cima o saco mais pesado, o de gelo, imobilizando-a, e no movimento brusco, paralisou-se também, nervo ciático pinçado, talvez, disseram. Dor. À mão chegaram um rodo e uma rede, dessas de limpar piscina, e não soube o que fazer nem com um nem com a outra. Acudiram, então, acorreram, matando o infeliz pequeno réptil a golpes de rodo. O pobre. Uma pena.
Passos lentos, subindo escadas até o quarto, até a varanda, de onde ondas batendo, de onde milhares de estrelas no céu e primeiros fogos de artifício anunciando o ano que nasceria dentro de quatro horas.
Velho vestido branco, tentou driblar a dor e concentrar novas esperanças, desejos, sonhos, resoluções. Vieram os drinques, vodka/suco de laranja, vinho, espumante e cada passo era um martírio.
Romaria até a fogueira, gente, festa, abraços, ano novo, ano velho, luzes dos fogos, risos, mais abraços, ondas lambendo os pés. E fim. Era já outro ano.
Vieram os analgésicos, antiinflamatórios, comprimidos, sublinguais, corticóides... E viria outro dia, que foi pior, e mais um, pior ainda, e no terceiro, finalmente, algum alívio, e o quarto dia, enfim, com a hora de pegar a estrada e voltar para casa, procurar um especialista, tentar a cura para a dor, já melhorada, ainda incômoda, ainda limitante.
O amigo sentenciou: isso aí na coluna é do seu medo de seguir em frente.
Com ou sem medo, seguiria - decisão de ano novo - afastando do caminho o que rasteja, sem que necessário seja sua aniquilação. Que no ano da Força, da abundância, da colheita, mesmo sem saber direito onde se vai chegar, é imperativo prosseguir.
Com ou sem dor, de pé.

"maré cheia
a doença traz a dor e a cura
e semeia
grãos de resplendor
na loucura
"

(Pérolas aos poucos - Zé Miguel Wisnik e Paulo Neves)




Publicado no embrulhandoopeixe, em 10/01/2009.