27.2.11

sábados, versos, purpurina



Tu pisavas nos astros. Sem ver teu vigia.

O dia começa mais cedo, antes do sol.
Lembro dos versos mais belos de duas canções e sinto saudade do manifesto comunista. Marx e Engels escreveriam hoje: "internautas de todos os países, uni-vos!"?

Reli as cartas do passado para reafirmar meu alívio por fazerem parte do passado. C me pergunta: "você assim não fica trazendo o passado para o presente?" "Deixa ele lá atrás". Respondo que não, quase convicta.

O rapaz do futuro, nascido sob o signo do coelho no horóscopo chinês, desapareceu sem deixar pistas. carnaval, já ouço os atabaques dos ensaios. a madeira chegou à construção. Faltavam as portas, que já foram instaladas. Com fechaduras. E chaves. Tris. Tetras. Segurança máxima.

Amanhece e os pássaros começam a cantar. Fico entre ir dormir mais um pouco e despertar de vez, pendendo para a primeira opção.

Ontem sonhei com cães. Dois. Um manso, um feroz. Este, confiável, o primeiro, não.
Talvez sonhe com borboletas agora. Transformação.
Pássaros. Liberdade. Nada. Repouso.
Só vendo. Sonhando.

Quanto aos versos, apenas palavras. Vulneráveis ao engano viscoso das línguas, à peçonha das bocas.
Como o avião, às guerras - e Santos Dumont saiu da vida.

Não lamento pelas próximas vítimas dos versos profanados.
O que não mata...

Nenhuma viagem ao alcance do olhar.
Nenhuma festa de páscoa: nem ovos nem coelhos.
Só o Atlântico. Sem Norte, nem OTAN.

Aos sábados, quase tudo pode acontecer. Mais ainda se é carnaval.

O mesmo com os domingos.
O que pode ser bom.
Muito bom.

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"Tu pisavas nos astros, distraída..."
(Orestes Barbosa: Chão de estrelas)
"Tropeçavas nos astros, desastrada, [...] e a cidade não tinha livraria"
(Caetano Veloso: Livros)
"Passas sem ver teu vigia"
(Chico Buarque: Vitrines)
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23.2.11

busca e apreensão



Ontem foi dia de romaria. Pela cidade, procurando bandeiras. Banderas. Fui ao italiano, ao português, ao recifense. Restaurante, botequim, chopperia. Não nessa ordem. Não nessa cronologia. Fui aos possíveis lugares onde não foi possível encontrá-lo.

Ontem ele não quis tomar vinho em companhia da moça que poderia ser sua filha - mas não era. Nem cerveja sozinho. Nem chopp com amigos. Onde fincou sua flâmula? - me perguntava. Em resposta, as buzinas do engarrafamento na avenida transversa travestida de Champs-Élysées nordestina.

Ontem eu não quis ou não consegui trabalhar, estonteada com as coisas que não davam certo ligeiro, que paciência está em falta e sem previsão de remessa.

Meu coração claudicante esboçou alguns passos em direção ao astro - vagabundo, luminoso -, tropeçou e caiu, mas amparei-o, estreitei-o no peito, comprimi-o, anestesiei-o.

Sem forças para andar até o rio, deitei e li histórias de detetives. Memorizei suas técnicas. Dei tratos à bola. Perdi o sono e o encontrei de novo, na madrugada. Não consegui descobrir as pistas do desaparecido.

Pensei em fazer como a moça que só perguntava, repetidamente: onde andas? onde andas, menino?

A bem das línguas, preferi perguntar mentalmente: aonde vais? quo vadis?

Ontem decidi continuar a peregrinação e não sossegar até encontrá-lo. Apenas para saber se seu olhar ainda é o mesmo. Se cortou os cabelos compridos, os cachinhos caídos no chão.

Então acordei.

Já tarde da manhã enfrento as ruas. Pisaré las calles nuevamente. Nem é carnaval mas não demora. Estará pelas vitrines, estará no alfaiate, na costureira, tirando as medidas para suas vestes de Arlequim.

E o tempo de palhaço já passou.


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imagem aqui

3.2.11

Purificação



Você perfuma a casa com cravo, canela, essência de hibiscos, de rosas. Varre o chão. Manda embora poeiras antigas, cata o lixo, põe fora.
Um copo de água e sal grosso para filtrar o ambiente. Incenso.
Você promove, na casa, uma limpeza espiritual. Passa de meia-noite e o sono já vem. Você havia posto sobre o sofá vermelho empoeirado, depois de remover a poeira, uma manta colorida - quadrados amarelos, alaranjados, azuis.
Você dorme na rede, o chão varrido, o ar purificado, a casa limpa. E esqueceu de tomar banho.
Amanhece e você não sonhou e não desligou a tv e não percebeu.
Amanhece e doem os seus ossos das costas e você não sente mais angústia, mas também não sente alegria.
O gato não voltou, o telefone não tocou, nada - até onde sabe - aconteceu.
Passou o dia dois de fevereiro, dia de festa no mar, dia de Iemanjá, e você não foi dançar a ciranda e tomar o vinho e encontrar as consulentes e amigas da cartomante no ritual.
Entrou fevereiro e você não se mudou, e você não mudou, e você continua procurando alguma coisa que não sabe ao certo o que é e talvez nem saiba se ainda procura.
Findou janeiro, que foi alegre, Saturno deixou de transitar na sua casa do amor, serás feliz de novo - disseram os astros e lâminas e oráculos - e a felicidade deve ainda estar a caminho, é certo. O Quíron não veio, o moço não era aquele, os amigos o são, verdadeiramente?
Um amor foi abandonado, um livro foi largado, uma porção de tralhas inúteis jogadas fora.
Amanhece e você demora a sair, as pernas doloridas, as costas doloridas, a consciência do tempo passando, da idade avançando, da velhice se avizinhando, mas você só tem 40 e poucos e o peso do mundo sobre o pescoço.

Amanhece e a casa está limpa. E você, não.

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