26.11.08

Sete vidas - a primeira




Um grande quintal ou o que parecia ser um a uns olhos de criança. Conjuntos de dois elementos, conjuntos unitários: dois abacateiros, um pinheiro, duas cirigueleiras, uma caramboleira, duas goiabeiras, um coqueiro, dois pés de pinha – fruta-de-conde, alhures – e uma mangueira.
Radiografia da pré-escalada: dos abacateiros, distância. Enganadores: galhos grossos porém fracos, propícios às quedas. Pinheiro espinhento, alto demais, enfeite fora de época, brasão, da família sem nobreza nem título. Cirigueleiras meio-termo, pra confiar desconfiando, lastro para o assento, gosto bom de madureza, resina curativa, sombra parca. Caramboleira reinando absoluta entre todas, copa alta descendente, saia arrastando minúsculas flores roxas pela terra, sombra para os ‘cozinhados’ de feijão verde, fogo de carvão, panela de barro, rendez-vous preferido dos pigmeus vizinhos. Goiabeiras pra balanço, aventura nos galhos mais altos, as melhores de subir, envergando sem quebrar, alojando marimbondos traiçoeiros entre folhas, fonte de chás para dor de barriga, bicho-da-goiaba, doce, geléia, suco, dinheiro minguado a mais na bodega. Distância do coqueiro, inacessível, amaldiçoado pela quebra do braço do irmão, e ainda assim, pai das cocadas do lanche.
Casa dos soldadinhos, os besouros zebrados, pinheiras de doçura e longa espera pelo fruto.
No fundo, vela içada, navio singrando mares em dias de ventania, a mangueira, gigante oscilando, lençol branco amarrado no mais alto dos seus mastros.

Era uma selva, uma floresta, um bosque, um reino, o quintal. No pórtico de entrada, o jardim. Rosais pintando tardes vagas em branco, vermelho-sangue, amarelo: príncipe negro, la france, santa terezinha, rosa-cacho - uns nomes delas. E mais perpétuas, cristas-de-galo, boa-noite, bom-dia, brincos-de-princesa, grama orelha-de-rato atapetando a passagem onde dormia o cavalo, esbelto, veloz, companheiro também arisco, encantado na mesma vara de tirar mangas. Tudo em dez metros de fundo, disseram. Em sei lá quantos de lado.

Lembro de um vôo, uma vez. Ciriguelas maduras, grito de “almoçar!” vindo da cozinha, tábua no chão, ponta de prego esperando o pouso, rasgando a carne, o pé sangrando, o choro miúdo, a carreira, hospital, vacina. Nada, nada. Pior o resguardo, longe dali, das folhas, sombras, viagens, segredos em língua de planta. Resguardo mais pra castigo, que logo acabou, com tudo de novo, susto e carreira, vidinha boa sem aperreio.

Talvez porque assim transcorreu a primeira das sete vidas, eu tenha hoje tanta pena de infância sem quintal, sem planta, sem sombra, sem cozinhado, sem cavalo-de-pau...

24.11.08

o meio do mundo




Caí no meio do mundo.
Um precipício sem amortecimento, bombeiros, cama elástica.
Barulhento, o meio do mundo. Gralhas, araras, pardais, corvos, gaviões, a fauna de penas em gritaria incessante, desabalada em vôo vertiginoso. Urubus silenciosos planando.
Caí e corri para a orla do mundo.
Deixando o piche da cidade - poeira marrom na estrada de saída - vacas, galinhas, touros, raposas e cobras atravancando a passagem. Impassível indiferença ziguezagueando entre os uns e os outros.
Narinas acesas pra o perigo e para o mato queimado.
É onde agora estou, na orla. Solos de sopro, grão a grão, me arrebatam sentidos e ouvidos mas continuo atenta. Apenada cumprindo sentença e rotina. Arrasto correntes à noite, abro portas que rangem à minha passagem, tateio as paredes, ásperas, na casa de reboco, na casa de ferreiro sem espetos perfurantes, sem bigornas, sem maçarico.
Entidades de rua me visitam em sonho. Acordo arrepiada, de pavor. E rezo, acendo luzes e velas. Cerco-me dos antepassados, invoco-os, peço por eles, a eles agradeço.
Chegaram eles todos também há pouco do meio mundo, onde bons e maus estão: bons que são maus, maus que são bons. De onde brota o princípio único, o Tao, circundando opostos, complementares.
Da orla do mundo ao meio, outro, caminho de grama, de pedras, pirilampos ladeando arbustos: pequenas lanternas intermitentes, ora enchendo de claridade as sombras.

Caí no meio do mundo. Depois parti, avisem a quem quiser saber. Caí até quando. Por ora não volto mais.

20.11.08

A coragem é translúcida


Salva-vidas ambíguo, impele ao despenhadeiro, instiga ao mergulho, amortiza a queda - a coragem.
Coragem para a partida. Para o retorno. Para a fuga mesma, mesma fuga. Para a troca de dores. Sabendo-o. Querendo-as.
Para a nudez. A queima das máscaras. A revelação. Do belo, feio, sagrado, profano, humano, divino. Do inteiro: deleite e pavor.
Coragem.
Na voz entre silêncios. No sangue das feridas revolvidas. Na recusa ao tédio e à morte e à covardia. No amar.
Coragem. No sofrer. E amar de novo. E mais.
Coragem para retirar-se. Recolher-se. Repartir-se. Refazer-se.
Para atravessar o deserto. A floresta. A noite. O dia que vem.
Para andar com o medo, sem vencido ou vencedor.
Para andar, enfim.
Pelo único caminho possível.
Até o fim do pântano, do lodo, das reticências...
Que - água pura - a coragem é translúcida.

15.11.08

A noite em que perdi a cabeça



A hidra de Lerna, pra quem tantas cabeças não bastam, devorou a minha.
Eu fiquei assim: muda, cega, surda, desmiolada. E sem dor.
Acordei no meio da noite. Nem era meio, mas começo de outro dia, uma da manhã, pouco mais, pouco menos, uma imagem biliar ainda na memória do fígado, na falta do hipocampo. Comprimidos revestidos, alcachofra composta e - repito - nenhuma dor.
Um pesadelo. Um corpo ferido. Sangue. Uma mulher. Brilho. Prata. Agonia. Sobrevôos na cidade. Noite. Escuridão. Medo. Medo. Medo.
Agora já passou. Luz na sala. Tela. Olhos vermelhos sobre o peito, colados pouco acima e em cima do coração ancião. Mula. Sem cabeça.
Apelei a Héracles, com sinais de fumaça. Herói, semideus, flechas envenenadas, operário antes da CLT, doze trabalhos como doze são os meses do ano (e eu de novo com a mania de números e associações sem fundamento científico ou argumento válido).
Veio ele e matou a hidra. Nem apareceu uma maior, nem me renasceu a cabeça.
Assim é melhor. Já posso seguir por aí, cega, surda, muda, dormente. Chamará um pouco de atenção aquele corpo que é o meu, andando a esmo, com olhares de estranhamento por sobre si. Imagino, não verei. Logo, a idéia, chegada agorinha do baixo ventre, não me incomoda. Curiosos se perguntarão o porquê. Não me importarei muito, já disse, pois que não sinto dor.
Mais difícil e demorado será amanhecer sem bocejar ou coçar os olhos.