25.2.09

Marionetes

Eu sonhei outro mundo, outro lugar.
Não tive medo dos trovões, da água despencando sobre a telha nua, da enchente nos levar. Como lavou,levou, na ribanceira, baratas, ratos, ritos, ritmos, garrafas de vodka, condons, fantasias afogadas.

E tive idéias, abafadas, arrematadas, silenciadas.
E nos vi, pequeninos, miniaturas, pendendo dos cordões, peraltando com nossas tesouras, cortando fios, caindo, correndo, dançando de roda.
Nós, meninos.
Nós, mãos dadas, rolando, cambalhotando na grama esmeralda molecagens, diabruras, traquinagens nossas, reveladas no refletor.
Até não querer mais.

E nos olhamos, sorrimos, calamos. Como se de repente, surpreendidos em falta. Como se de repente, despertos. Adultos. Cônscios. Da nudez. Do desejo. Do perigo.
E nos vi, perdidos, confusos, esquivos, no paraíso devassado.
E nos vi, fugindo, partindo, sumindo.
E nos vi, presos novamente aos fios, pés tocando o solo sem firmeza, balançando o corpo.
Assim nos vi: apenas, mais uma vez, marionetes pendendo dos cordões do céu.
Assim, engrossei a chuva.

Lá fora ainda trovejava.

14.2.09

A Torre

O desmoronamento matou um, feriu dois, deixou desabrigados incontáveis.

A torre era a casa de Deus, na carta, o inevitável. Destino?

Saiu, correndo, mais depressa que ligeiro, em desespero, telhado de vidro temeroso de calhaus, rebolos, pedregulhos, arremessos.

Com que fim esse oco, dor, surda, atropelando os passos na carreira? Para onde?

Ouviu o baque, o grito, sentiu o sangue escorrer.

Sentiu que aquela dor surda que parecia não passar nunca mais, não duraria muito.

Não mais que dois anos.



"Eu ainda te procuro
No claro, no escuro
Nos lugares seguros ou não
Eu ainda te procuro
Com olhos de águia
Com o faro agudo de cão..."


(Ivan Lins/Vitor Martins - Ainda te procuro)

9.2.09

Meu querido,



sinto frio, muito frio. Peguei na sala as botas, não sem pensar nas cartas de Éxupery. Um trecho de uma contava: tão, tão triste e só e frio o quarto que não tinha coragem de separar um do outro sapato.
Saí de Alésia às oito da manhã, ainda escuro. Um mês sem falar com ninguém. Ao descer a rua do Moinho Verde, a florista me deu bom dia. Bom dia. Tão pouco! Tanto!
O cinza está em toda parte. Nos telhados, nos pombos, no céu, nos olhos de quem passa, apressado, indiferente.
Não sentia muito bem as pontas dos dedos das mãos quando entrei no café tilintando as poucas moedas no bolso do casaco. Cidade cinza. Casaco preto.
Lembrei-me do azul. Do nosso mar. Dos olhos do irmão, da filha, crescida, já.
Queria me dizer feliz. E me preocupo, por falar sozinha. É recorrente. Quanto mais é, mais me preocupo.
Não sei se há uma idade certa para se enlouquecer. Quero crer que sim, para sentir alívio ao pensar já ter passado dela.

Devo confessar que sou uma traidora. Uma infiel.
Eu te falei uma vez - lembra? - do meu desejo, do meu pedido aos céus, da promessa: nunca, nunca o amargor.
Olho o tempo que foi. Foi muita dor. E alegria. E arado. E colheita. Então, não é pela vida, ou é: capitulei. Quebrei a promessa. O amargor se aproxima, envolve, enlaça, breve terá se instalado em definitivo.
Descrente, estou.
Malgrado o azul de lá de longe.
Malgrado o teu olhar, os olhos pequenos sorridentes.
Malgrado o bom dia da florista.
Descreio das gentes, do amor, do futuro.
Escapa a esperança.

Meu querido, as gentes são más. Como são más! Como sabem ser más! Por nada além do prazer de sê-lo. Quanto tempo passei negando quando tantos meus já o diziam?
Sim, traí a promessa. Larguei a ilusão.

Sinto o sangue voltando às pontas dos dedos, café aquecendo mão, alma, garganta, vento gelado cortando as narinas, passos rápidos até a avenida do Maine.

Talvez ainda haja salvação pro meu ser doído. Pela surpresa ao descobrir, pela relutância em admitir serem más as gentes.
Por ainda haver o azul,
a florista,
os teus pequenos olhos sorridentes.


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Boitatá

Acordei com o tchic-tchoc de passos no cascalho. Pela janela, nem sombra. Nadinha, só o som, renitente: tchic-tchoc. De pé num salto, agora te pego, flagro, vais ver só! (seria um rato, gato, gatuno, malassombro, passado, chafurdando o jardim?)
Ninguém à vista, afora a lua, cheia, nua, indecente, sem véus ou vergonha, duas da manhã, nem sexta era, nem 13 ainda.

Agora sim, ventando na rua, sumindo na esquina, desabalado, o boitatá. Rastro de fogo no chão, cheiro de chifre queimado no ar, clarão, depois um xiiiii, quando caiu no mar.

Ouvi dizer, virou tritão, deu no jornal, depois, também.

Naquela noite, perna bamba, susto e surpresa, entrei em casa, tirei os brincos. Era deles, balançando, o tchic-tchoc que pensei do cascalho pisado.

Às vezes se endoidece à toa. De só. No fundo, no fundo, ninguém quer mesmo ser só. Nem sereia. Nem tritão. Nem boitatá.

2.2.09

Dia Um, dia Dois





Tanta, tanta coisa, colorida, diferente, mais ou menos, igual: tecido, vidro, madeira, metal...
Poucas patacas nos bolsos.

Ibisco, pimenta jamaicana; calcinhas bunda-rica para bebês, apenas, trouxe eu.

Amabilli, licor de banana; chocolate de Gramado, somente, trouxe você.

No portão de saída a encontramos. Veio conosco até em casa.

A Mãe da América Latina, que embalou nossa noite.

E a Rainha do Mar lavou nosso amanhecer.


"o amor é simples
e as coisas simples
as devora o tempo
".

(Cesar Isella - A. Tejada Gómez)