9.2.09

Meu querido,



sinto frio, muito frio. Peguei na sala as botas, não sem pensar nas cartas de Éxupery. Um trecho de uma contava: tão, tão triste e só e frio o quarto que não tinha coragem de separar um do outro sapato.
Saí de Alésia às oito da manhã, ainda escuro. Um mês sem falar com ninguém. Ao descer a rua do Moinho Verde, a florista me deu bom dia. Bom dia. Tão pouco! Tanto!
O cinza está em toda parte. Nos telhados, nos pombos, no céu, nos olhos de quem passa, apressado, indiferente.
Não sentia muito bem as pontas dos dedos das mãos quando entrei no café tilintando as poucas moedas no bolso do casaco. Cidade cinza. Casaco preto.
Lembrei-me do azul. Do nosso mar. Dos olhos do irmão, da filha, crescida, já.
Queria me dizer feliz. E me preocupo, por falar sozinha. É recorrente. Quanto mais é, mais me preocupo.
Não sei se há uma idade certa para se enlouquecer. Quero crer que sim, para sentir alívio ao pensar já ter passado dela.

Devo confessar que sou uma traidora. Uma infiel.
Eu te falei uma vez - lembra? - do meu desejo, do meu pedido aos céus, da promessa: nunca, nunca o amargor.
Olho o tempo que foi. Foi muita dor. E alegria. E arado. E colheita. Então, não é pela vida, ou é: capitulei. Quebrei a promessa. O amargor se aproxima, envolve, enlaça, breve terá se instalado em definitivo.
Descrente, estou.
Malgrado o azul de lá de longe.
Malgrado o teu olhar, os olhos pequenos sorridentes.
Malgrado o bom dia da florista.
Descreio das gentes, do amor, do futuro.
Escapa a esperança.

Meu querido, as gentes são más. Como são más! Como sabem ser más! Por nada além do prazer de sê-lo. Quanto tempo passei negando quando tantos meus já o diziam?
Sim, traí a promessa. Larguei a ilusão.

Sinto o sangue voltando às pontas dos dedos, café aquecendo mão, alma, garganta, vento gelado cortando as narinas, passos rápidos até a avenida do Maine.

Talvez ainda haja salvação pro meu ser doído. Pela surpresa ao descobrir, pela relutância em admitir serem más as gentes.
Por ainda haver o azul,
a florista,
os teus pequenos olhos sorridentes.


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2 comentários:

shintoni disse...

Visitei seu blog e gostei muito do que você escreveu. Já estou acompanhando!
Por isso, gostaria de convidar você a participar do blog “Duelos Literários”, no qual as pessoas criam textos sobre temas de sua escolha e os textos são postados no próprio blog.
Passe por lá e, se gostar da proposta, participe!
http://duelosliterarios.blogspot.com/
Um abraço e parabéns pelo seu blog!

MgP disse...

Passarei, sim. Obrigada. O seu 'Duelos' já consta da lista de cá.
Um abraço.