23.12.09

A estrada



Era essa a estrada, era sim. Passei por ela há anos, bem me lembro. Mas havia um ingazeiro de galhos debruçados sobre o rio.

O rio, era esse, sim. Mas havia água em seu leito.

Eram essas as pedras, não se moveram, até onde a vista e a memória ainda podem afirmar. Mais claras? Mais escuras?

Eu passava por aqui, e descansava à sombra da tarde vermelha. E sonhava nuvens e contava pássaros, e catava seixos, e olhava passarem as cabras e cabritinhos e bodes e todo o rebanho - os rebanhos.

Era essa a estrada, hoje vazia, sem o ingazeiro, seco o leito do rio.
Era essa a estrada que sorria, antes.
Era essa a estrada, agora árida, agora deserta, agora parecendo sem fim.

Foi essa a estrada que deixei.

É a ela que hoje volto, sementes nos bolsos, dança da chuva nos pés.
É nela que descubro, tanto tempo depois, novos atalhos, veredas, encruzilhadas.
Poucos pássaros, poucas nuvens, água nenhuma.
E o sol. E o calor.
Nela plantarei rios, casas, gentes e quintais.
Por ela continuarei a peregrinação, no estio, na aridez.
Nas cheias, no tempo bom.
Na estrada onde fui. Onde sou.
Onde um dia plantei.
De onde um dia parti.
Onde hoje começo nova semeadura.

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Se esse rumo assim foi feito, sem apuro e sem destino
Saio fora desse leito, desafio e desafino
Mudo a sorte do meu canto, mudo o Norte dessa estrada
Em meu povo não há santo, não há força, não há forte
Não há morte, não há nada que me faça sofrer tanto

(Sidney Miller - A estrada e o violeiro)

21.11.09

Passageiros




Em seus olhos sorridentes, miúdos, meninos, a clara manhã.
A cachoeira cristalizada, queda d’água adiada a jamais.

Chão retirado de sob os pés, fardos de sobre os ombros jogados à terra.

Quase levitar, nenhuma dor, notas no piano.

O encontro e a pele encrespada, pelos eriçados, arrepios. Voz suave, ciciar de lençóis em dedos entrelaçados. Desejo e o corpo ardendo, o estreitamento, um em uma, um a um.

O riso no portão, até breve, o giro do mundo suspenso. Mais ninguém, mais nada.

Espera. Silêncio. Ausência.

Sem adeuses. Sem promessas. Sem reencontro. Sem então.

O tempo sem fim e a seca murchando pétalas e sonhos. E contos.

Não saímos à noite a catar estrelas,
que nem chegamos a existir.


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17.11.09

Férias




Não era mais noite e o despertador não tocou e a manhã já tinha se esvaído em sono em nada em vão quando o cancão chamou de cima das ramadas altas e nunca antes na história desse lugar tinha vindo um cancão em visita, presságio, passagem, chafurdando a placidez do tempo, anunciando avalanches.
Aí acendi a luz e limpei a pia e fiz o café e morri de preguiça e de sono e de tédio das noites bourbon 33, carbono 14, e de ansiedade pelas quase férias, pela malemolência permitida concedida consentida, o cheiro de maresia futura chamando pra logo, pra ontem, pra já.
Foi quando me dei conta da urgência das malas bagagens escolhas e de não saber quem ou o que levar junto.
Nem motorista nem amigos nem mala com-sem alça nem lembranças nem memórias nem mágoas nem desatinos.
Uns livros e uns papéis e um computador e um transporte e uns lápis, de cor, cinzentos e uns projetos e uns desejos e umas idéias - esses sim.
Na encruzilhada, nem dúvida nem despacho. Espera, lamento, hesitação nenhuma.

Nem sei ainda pr'aonde ir nem me preocupo, que a estrada diz, que o nariz aponta, que o gato zombeteiro não me confunde mais.
E nem quero atender telefone, escrever carta, e-mail, sms, cartão, telegrafar, dar sinal, de vida, de fumaça, sonoro.
Daí que me levo, me vou, me fico, me volto depois, um dia, uma hora dessas qualquer, qualquer hora, hora boa, fim de tarde, manhã cedinho.
O cancão já se foi, graúdo, barulhento, esquisito, bonito inda assim e o café cheira no fogo e o corpo acorda e a bagagem pronta acena aponta e vou indo, vou indo, vou indo.
Agora, indo.
Na volta, bem.
Muito bem, obrigada.

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2.11.09

Depois do banho




A última tentativa depois do banho de imersão.
No barril de madeira, loção e óleos. Sal grosso e aromático. Contra olho gordo, magro, em forma.
Dali ao mar, uns passos. E a nuvem passando sem querer virar água. Sem lava-pés, lava-jato, lava alma.
Um barco partindo. Um barco chegando. Ondas indo, vindo, o ensinamento de Netuno. De Iemanjá. Ondas e silêncios.
Depois do banho de imersão, não mais palavras. Não mais discurso. Não mais intenções. Nem más. Nem boas.
Camino nuevo - duas mãos, duas vias.
Feito de silêncios. Segredos. Mistérios.

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"o desastre tirou o trem dos trilhos
e o brilho frio das estrelas
ilumina o metal dos risos
"
(última mentira - Capinam)

30.10.09

Enquanto a noite cai




Enquanto a noite cai me sinto ausente. Não estou onde estou, estou além. Longe do mar, longe do lugar onde nasci. Tem alguém em casa, além de mim. Mas não estou em casa, nem ele também. Meu corpo físico, apenas, estirado no sofá vermelho. Sua presença na sala. Seu corpo longe.
Próximos. Distantes. Eu, que estou aqui, mas não estou.
Ele, que não está aqui, mas está.

Penso nos seus olhos negros, no seu olhar de cachorro ladrão, esquivo, de esguelha, como se sempre em falta, como se sempre prestes a ser pego em falta, como se sempre escondido, escondendo.
Penso em suas mãos firmes. Em suas mãos trêmulas. Em suas mãos magras. Em suas mãos. Nas linhas da sua mão, que eu não soube ler, como não soube ler as linhas das minhas mãos, firmes, magras, longas.
Penso em sua inquietação. Em sua quietude. No seu riso, escasso. No seu siso, farto. Em sua voz cantando, calando, dizendo, mentindo.

Enquanto a noite cai penso no navio em que não embarquei. Sem lembrar direito o que me fez ficar.

Penso no amor maltratado, amassado, pisoteado, cuspido, quebrado, jogado no lixo de onde o retirei com a incumbência vã da reciclagem.

Meus amigos estão viajando. Meus amigos estão trabalhando. Eu, que tanto trabalhei, descanso agora enquanto a tarde perde as derradeiras luzes naturais. Meio a um fantasma que dá voltas pela sala. À interminável luta contra os cupins. À sede de alegria. De vinho. De verdade.

Enquanto a noite se instala implacável ao redor de tudo, abro a geladeira quase vazia. Água, o eco e um doce, que de bom grado daria a quem dissesse onde a alegria foi morar.

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21.10.09

as tripas e o coração



Voltei para casa porque precisava dizer, que há muito estava muda. Sofri uma intervenção cirúrgica. Um belo dia amanheceu, bocejei, e quando dei por mim, me havia entrado na boca um alicate, que de um sopapo me extraiu as tripas pela mesma boca - a de onde sai o mal.
Ardia-me a garganta, um pouco, e só. O fato é que por dentro, abaixo do estômago, estava vazia. Nada mais podia digerir dali por diante. Nem sentir, que nesse arranque, saiu-me junto o coração. Este, já de antes – e a bem da sobrevivência – devidamente convertido em tripas.
O vazio perdurou, e veio a consciência, da perda, e o luto, e a dor, ou e a dor, e o luto - nem sei que ordem usar.
Durante o luto, perdi a voz.

Andando na rua me veio à lembrança uma história:

Era para ser um encontro, leve e casual.
Era para ser uma dança, uma dança apenas. E no bailado, rodopiaram tanto que perderam o eixo. A direção. E o ritmo, tornado veloz, veloz. E entraram em órbita. E nesse rodopio a terra foi ficando longe, longe, um ponto azul, até sumir de vista. E seguiram rodando no espaço, feito pião, cruzando constelações, objetos luminosos, passando ao largo dos buracos negros. E foram muitos. E foram um.
Até que um asteróide os desviou da órbita e regressaram à terra, e se esborracharam, quase, no impacto, de encontro ao solo outra vez.
Eram dois e vasculhavam o chão, catando pedaços de si. Eram dois, e meio recompostos, voltaram ao baile. E dançaram outra dança, e mais e mais danças, em rodopio lento e uniforme. Não leve. Ou casual.
Eram dois e embora juntos, não se encontrariam mais.

Com essa lembrança, a voz me voltou. Assim, sem aviso prévio, sem se anunciar. Chegou e pronto, me vi tagarela, em frente à igreja, no banco da praça, meio aos taxistas e desocupados da hora.
Ainda um vazio, ainda a procura pelas tripas, pelo coração.

Quis vir imediatamente pra casa - precisava dizer.
Que dizer ajuda a esquecer. E esquecer, a reencontrar.

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[...]já que gosto tanto de ler, eu mesmo me arrisco a escrever livros irrelevantes que ninguém quer ler. Mas continuo fazendo deste ofício o motivo de minha existência. Porque escrever é como amar[...]
(Carlos de Souza, aqui)

16.10.09

mosaicos



Vi meio nariz no chão. Um pedaço de olho. Mechas de cabelo.
Não, não, nenhum episódio macabro.
Reflexos, somente, em cacos de espelho.
Tentei formar um rosto inteiro, super bonder da recomposição.
Em vão. Espelhos quebrados jamais mostram a mesma imagem.



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noturno




Pelo ar, sobrevoa a cidade. Noturno. Veloz. Cruzando, roçando, ao passar, lobos, vampiros, morcegos, criaturas da escuridão, habitantes do seu pavor.
Um tocou seu braço. Uma bebeu seus olhos.
À frente, no teto do mais alto edifício, repousa em espera, anjo maldito, banido de céu e terra.
Encerrado no cofre o revólver, balas de prata. E onde o segredo em papel amarelo?
Segredo. Existência inteira em segredos. Inconfessáveis. Dupla vida, tripla, quádrupla. Quantas vidas? Quantos seres em um?
Manhãs adormecidas anos a fio, dias sem sol. E o brilho na noite. E o poder. E o entorpecimento.

Uma mulher solar. Uma mulher abissal. Uma mulher visceral.
Uma mulher e sua sede infinita. De devassar. Revirar. Remexer. Revolver. Penetrar.

E o interdito.
As páginas trancafiadas, os códigos sem honra, segredos a sete chaves. Sem partilha. Seu prazer. Seu poder. Sua solidão. De mais ninguém.

Um rio transbordando - fobia de águas profundas. Os arrecifes. O vôo.
A entrada, proibida.
As portas cerradas.
Ocultos a alma o prazer o remorso a culpa a raiva a dor. E o brilho.
Noturno.
Desvarios o assaltam no vôo. Na travessia do túnel. Na cidade.
Na noite.
Na noite em que assiste inebriado o desfile das fêmeas no cio.
Sem ver, na outra direção, uma mulher partir.

12.10.09

homens e lagartos



I - A inquilina

Tenho um sofá. Na varanda. Vermelho, verde e laranja.
Uma lagartixa jurássica mora nele.
Parece um lagarto. Um dragão de Komodo miniatura.
Move uma ação de usucapião. Não contesto. Ela ganha o sofá. Ficam os dois a me fazer companhia. Rio do seu ciúme quando sento nas almofadas e espicha a cabeça com jeito de “como ousa?”. Inútil mostrar a nota fiscal. É dela e ponto.

II - Os comuns

Sirenes no meio da noite, madrugada, vozes do lado de lá. Bigornas vesperais, noturnas, estridentes, de ira, deboche, despeito. Ferros retorcidos, batalhas perdidas. Ouço surpresa. Atônita. Querendo ignorar quando insistem.
Os maus são capazes de muito. De quanto são capazes todas as pessoas?

III - Os bons

Ela me abriu a porta de sua sala quente e eu sentia frio.
Não me conhecia. Deu-me de comer e de beber. Pão e vinho. Cobertores. Leito. Calor. Abrigo.

Ele era clandestino. Eu não. Ele trabalhava. Eu não.
Sem dinheiro e sem amigos. Deu-me um trabalho. Clandestino. Nada grave. Pratos. Bandejas. Pessoas. Indo e vindo, braços doídos, cinco da tarde às três da manhã, atropelando palavras, derramando copos em capotões, trocando pratos por guardanapos, sal por pimenta.
Em terra estranha.


O rabo se perde. E renasce.

Os ódios não vingam. E se vão sem deixar rastros.

A lembrança da partilha permanece. Amizade. Amor.

Onde a fronteira, a linha, a divisa, tênue, entre bem e mal em cada um?
Que são um e outro?

Às vezes sinto saudades dos 80.

Às vezes, descrença.

Às vezes, esperança.

Enquanto discordamos encontro seu nome entre os terceiros.

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"Você verá que é mesmo assim, que a história não tem fim
Continua sempre que você responde sim à sua imaginação
A arte de sorrir cada vez que o mundo diz não
"
(Brincar de Viver - Guilherme Arantes)

6.10.09

Contrição



Havia um cão rosnando, um cão amarelo, feroz, acorrentado. Havia um homem falando ao telefone, nariz aquilino, olhos profundos. Havia o medo do cão, o medo do homem, embora a voz, que acalmava, nem dois pra lá nem pra cá. Silêncios intercalando revelações, um homem de além-mar, roupa branca, fala estrangeira.
Quis ir consigo, e o portão fechado. Quis ir consigo e o cão se soltou. Quis ir consigo e esqueceu. Ficou na costa, entoando cantos de trabalho. Não se despediram. Desapareceu.

Havia outro cão, uma cadela, que não era feroz.
E um longo corredor.

E a campainha tocando, interrompendo sono e sonho.

Mais um dia, e acordei cansada. Mais um dia, e tanto a fazer.

Então vim aqui, que vi aberta a porta da Igreja, e subi os batentes, e entrei, reverente, e pensei que, Senhor, aqui venho, que não sou digna que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei salva (Mt.8,5-11). Então pedi proteção. Sabedoria. Clareza. Discernimento. Então agradeci.

Preparo a viagem, as malas, estudo o mapa de navegação. Falta pouco tempo para lançar o barco ao mar. Para encontrar as perguntas, que respostas não há.
Falta pouco tempo para chegar à ilha, onde estão os coqueiros, onde está o baú, onde estão os tesouros, onde está a menina adormecida que um dia fui.
Falta pouco tempo para chegar à ilha, onde inteira estarei até poder regressar.

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"Pra que sofrer com despedida,
se quem parte não leva
nem o sol, nem as trevas
E quem fica não se esquece
tudo o que sonhou?
"
(Rita Lee-Paulo Coelho; Cartão Postal)

2.10.09

O relógio

São treze horas, a reforma proposta não se deu. A máquina de costura os panos dobrados os carretéis coloridos os jovens delinquentes o presidente deposto.
São treze horas a tarde nasce queimando miolos suores mediterrâneos canícula incipiente.
O ponteiro do relógio quebrado marca avisa indica, são treze horas.
Eram treze horas quando o diagnóstico ficou pronto: sociopatia, fragmentação, inteira irresponsabilidade consigo com o mundo com o próximo e o distante.
Ninguém comprou presentes enviou cartões felicitou amigos em seus cumpleaños, birthdays, aniversários. Ninguém juntou os trapos arrumou a mala entregou a chave o plano o projétil não disparado.
Eram treze horas o papel de parede os nus enchendo o teto a cama desfeita as peças no chão o amor naufragado o ponteiro quebrado o amargo o sal o gozo a raiva a dor.
Dando voltas no almoxarifado, onde está o martelo, onde está a britadeira, onde está a chave a chave que abre todas as portas a porta do inferno do sono do paraíso.

Passou o caminhão do lixo, os caminhões esmagam pessoas trituram dejetos percorrem as cidades do planeta freio buzina derrapagem partida chegada.
O caminhão do lixo triturou o que restou das engrenagens do ponteiro do vidro do relógio o que deixou o martelo.

Tenho um amigo, ele me disse, ele pensou, ele escreveu, eu repito. Amanhã falo de flores, amanhã, de primavera.


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20.9.09

O recorrente, a casa, o furacão



Tomei decisões que já vinham maturando. Havia vendido os cavalos, o que rendeu um bom dinheiro, e fui morar no sítio. Lá ergui a casa. Madeira e tijolos. Resistente a lobos e temporais e cupins e ao calor, à languidez aportada pelos sóis de janeiro, à inércia dos invernos.
Nessa morada fiz meu templo.
Nela vivi, sonhei, dormi, trabalhei, o que é muito igual.
Igual não foi a vida que nela construí a cada dia.
Plantei um jardim de acácias, begônias, gerânios, jasmins, sempre-vivas. Sem amores-perfeitos, que não encontrei suas sementes nem mudas. As samambaias emolduravam a varanda - as samambaias são particularmente sensíveis às energias do ambiente e manifestam isso na posição de suas folhas, ora caídas, ora vivazes. São o termômetro do jardim. Por isso as quis lá.
Cultivava por paixão.
Havia árvores no pomar, generosas em sombra, e frutos, que repartia a cada safra, tantos eram.
Na horta, manjericão. Alecrim. Hortelã. Verduras, especiarias, pimentas, temperos para a grande mesa de madeira, a de cajueiro bravo que conservei por mais de dez anos. Nela, histórias, encerradas em seus sulcos. E a alquimia e o produto do fogo e da brasa. Assados. Cozidos. Poções. Para o estômago. Para o coração. Do forno. Do laboratório.
Continuava escrevendo. E assim, revivendo, projetando, elaborando, narrando, compreendendo, resolvendo. Mas só às vezes. Noutras, amealhava dúvidas. E reinventava a vida em caneta e papel.
Plantar, cozinhar e escrever era o que mais fazia na casa de tijolos e madeira. Lia livros, estudava línguas, escutava música, sim, isso também, na maior parte do tempo livre.
Na lua cheia, a dança do vento, o vinho tinto, os olhos úmidos, os coqueirais.
Não me sentia só, que na casa havia gatos, cachorros e amigos em visita.
Foi muito tempo. Foi pouco tempo. Um ano assim.

Um dia, um furacão varreu o sítio, e não bastasse tirar tudo do chão, levou tudo embora. Não ficaram sequer vestígios.

O vento batendo a janela contra a parede me fez acordar desse sonho tão longo que parecia ter consumido um ano de uma vida.

Anotei o sonho, por conselho do analista. Na sessão seguinte, esqueci o papel. Na outra também.
O tempo foi passando, abandonei a análise.
Esqueci depois a anotação, que jogada na gaveta, continuou dormindo seu sono de celulose. Amarelecendo de fungos. Roída por traças. Encerrada no escuro. Como o sonho. Como a casa. Até sempre. Até nunca mais.

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"...la mato y aparece una mayor
con mucho más infierno en digestión
"
(Sueño con serpientes; Silvio Rodriguez)

8.9.09

Ano



Quando voltou, tudo estava fora do lugar. Era como se a vazão do açude tivesse deixado à mostra a casa submersa. Ruína e sedimento.
Mas não, não passou água por lá, não passou boi nem boiada, nem manada de elefantes. E já não falava só há anos, trinta, mais. Então o que via estava lá. Nada de armadilhas da mente.
Quando voltou, a cadeira estava sobre a mesa, pernas para cima, como ficavam as cadeiras nos dias de faxina. Esfregão e cera Cardeal.
Descida, acomodou um corpo amorfo, entre cansado e ausente. Um corpo impactado, sobrevivente a um mínimo de 7 graus na escala Richter. E vivo e absorto e incrédulo.
Quando voltou, era o ano novo. O ano novo que começava do meio para o fim, mês nove, ano nove, ano novo.
Conjunção de baboseiras astrais não de todo inúteis - disseram. Forma de poesia para enfeitar o caminho.
Quando voltou já não era mais a mesma pessoa. Não havia um rio, não havia o homem que se banhava no rio, nem mais dialética, nem mais princípios fundamentais, as páginas emboloradas no baú de couro.
Quando voltou não se importava com os adornos, nenhum louro da vitória, nenhuma flor de laranjeira, nenhuma grinalda de hera. Um ser nu. De nudez terrificante, pois também sem pele.
Pele, couro, casca, couraça, como decidir de que se vestir dali em diante?
Menos mal haverem tantas opções.
Para o ano, pele mesmo, que o mais podia espinhar sobre os ossos, nervos, veias. Para o ano, outra pele, e melhor escolher direito. Bem escolhido. Uma bem curtida, resistente a sol e chuva. Menos maciez e mais dureza. Uns cinco de dureza, mais ou menos, noutra escala, a de Mohs. Parênteses para a escala de Mohs, que finda no diamante, de dureza dez. E no entanto, é alótropo do grafite, mole, por sua vez.
Assim queria a nova pele para o novo ano. Mesma composição, outra dureza. Pra abrigar dificultando o caminho da dor que vem de fora, já familiar a de dentro.
Quando voltou estavam mortos os insetos, perfilados no solo entre as ilusões também inertes.
Quando voltou pensou em desistir mas fez planos.
Uma pele nova, todo o necessário para outro plantio, outra colheita, outra edificação.

Sobre a rocha do alicerce deixou se perder a mirada na direção do mar.

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1.9.09

Cafard




Há insetos mortos no chão
. Nem ouso dizer quais. A mim repugna pensar no nome. Nome que é também tristeza.
Invadem os sonhos e espalham o terror. Está assim a casa, preciso dizer. Baratas – já disse. Tristeza.
Se pudesse, bania ambas. Do mundo, dos dicionários, das pessoas.
O veneno nunca foi suficiente, e elas voltam.
No silêncio. No escuro. No banheiro. No ruído da noite. Na calada da madrugada.
Limpo tudo, tudo, com minúcia, detergente, bactericida, desinfetante. Nada.
Foi-se um mês. Veio outro. Foi-se um amor. Veio outro.
Os meses sempre vão. O amor sempre volta. Diferente. Igual.
Quando passa, chega o cafard.
Avoir le cafard – expressão apropriada. Literalmente, ter barata. Masculino, singular: barato.
Ter barata. Ter tristeza. Ter insetos.
Em casa. Nos sonhos. Literalmente. Simbolicamente.
Historietas baratas, apenas. Dramalhões vendidos a R$ 2,50 no paralelo. Na porta do banco.
Caro é o veneno. E pouco. Como sempre, insuficiente.
Quando entrar setembro é somente uma canção. Mas entrou setembro. E em setembro vai ter sol. Gatos caçadores de insetos. Flores. Alegria. Primavera. E – almejo - bastante inseticida.

25.8.09

Votos

Hoje eu queria mandar você ir pro inferno. Sem passaporte. Sem salva-vidas. Sem remo. Sem uma pataca.

Você ficaria na porta, olhando o fogo depois do rio, sem poder entrar. Sem como pagar a travessia, o barqueiro tosco, sem poder voltar.

Eu queria mesmo estar na terra, acima do inferno, pisando o chão sobre sua cabeça. Recalcando sua inércia.

Hoje eu queria varrer o seu quarto e arrastar seus documentos junto com a poeira até o lixão. Seu registro geral sumindo, sua foto de pessoa física se derretendo no lodaçal.

Hoje eu queria mesmo era você encerrado eternamente no Hades. Você, que tem medo dos seus irmãos. Você que ladra e não morde. Você, que o que diz não se escreve.
Eu queria.

Hoje eu queria não ter memória.
Eu queria viver em outro planeta.
Eu queria ser outra pessoa.

Hoje eu queria, por um momento,
que o inferno não fosse aqui.

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E pode o nosso teto, a Lapa, o Rio desabar
Pode ser
Que passe o nosso tempo
Como qualquer primavera
espera, me espera, eu vou voltar

(Palavra de Mulher, Chico Buarque)

24.8.09

Agosto



Agosto é um mês estranho.
Por mal afamado, que quando desgraça acontece nos outros, ninguém dá fé.
Pela rima e pelo dito: mês de desgosto - como se desgostos nos outros não houvessem.
Pra alinhavar e segundo os astrólogos - categoria démodé -, inferno astral dos setembrinos.

Eu, setembrina, quis conciliar em agosto.
Estava com cem quilos. Imensa. As costas doendo de tanto peso. Embora o índice de massa corpórea não o denunciasse, havia um excedente. Considerável. Importante, sim.
Fui ver e era de impressões. De papéis. De compromissos adiados. De equívocos. De enganos.
Fui ver e precisava fazer uma lista, longa.
Fui ver e saí riscando itens, um a um.
Fui ver e estava condensada. Sintetizada. Necessária. Sucinta.
Em agosto.

Estou assustada, um pouco, ainda. É que, mês de ventania, temo que me leve, leve assim.
Comprei uma âncora, para se precisar. Qualquer vento a mais, ela salta da bolsa e se enfia no solo mais próximo. Recolho-a, então, quando quiser voar.
Estou possível. Nem tanto ao mar, nem tanto ao céu.
Nem tanto à terra.

Surpreendentemente - ou não - possível. Em agosto.

14.8.09

O nada e o movimento



Menor interesse em explicar, certificar, justificar e outros da primeira conjugação. Nada que implique em culpa, preocupação, desalento: água morna em pedra pura - diria o poeta que li dia desses, vendo o barco singrar águas de outro tédio.
Convidei Marocas a fazer bombas de fabricação caseira e ela se fez de rogada, que estava de dieta e não resistia a chocolate.
Contei-lhe ainda do mínimo interesse em dizer de que me ocupo e quando, menos de saber de que se ocupam e quando, daí ter desligado a televisão e ignorado os gritos dos jornaleiros no semáforo, sua pressa, seus rostos esbaforidos, seus dribles nos monstrengos de lata, lá pra cá, cá pra ali, esperando as luzes da noite e o calor arrefecer.
Enquanto a tropa apresentava as armas, o passarinho planador deu as caras na varanda, perscrutando o interior a ver se novidades havia. E nada, nadinha. Nada continua incansavelmente a acontecer. Nada é assim, feito visita inoportuna, demorando, agregando vassouras atrás das portas, acinzentando os ladrilhos da janela, fuligem indesejada do tempo embotando as vistas.
Nada acompanha o estado de(s)ânimo, vontade sã de viagem, abandono do lar e do café esparramado no fogão.

Quando o táxi chegar vou sem malas até o porto. De lá te aceno, juro, lenço dourado da cor do sol, promessa de fartura vindoura, e mandarei cartas, muitas cartas, todas escritas à mão, caligrafia inconfundível, linheira, sóbria, e no entanto, ainda nela um quê da sensibilidade pescada do que restou.
Muitas, repito, todas em papel perfumado, gerânio, jasmim e noz moscada, pitada de maresia e bons ventos. E não volto.
Será só o que prometo, e sempre cumpro.
No mais, nenhuma explicação.

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Longe o profeta do terror
que a laranja mecânica anuncia
Amar e mudar as coisas me interessa mais

(Alucinação, Belchior)

27.7.09

Desfechos

"...Je ne veux pas travailler..."

Foi quando saiu do cinema sem o menor interesse na cena seguinte, enredinho de quinta parecendo a vida em volta.
Foi quando decidiu telefonar, os números dançando entre a indecisão e o astigmatismo, pra dizer o que em dois anos não tinha conseguido: - Quero viver com você. No fim do mundo, até.
Tinha esperado dois anos, ela, para ouvir isso. Naquele momento, já não fazia a menor diferença. Respondeu: - Não quero mais. Desisti de você. Desisti de nós.

Ficou como que suspenso no ar por um instante, ele. Decidiu ir até lá, como se outra esquina fora. Pegou o avião, horas sobre o oceano, pegou o táxi, caminho interminável do aeroporto ao apartamento, bateu à porta, olhou-a nos olhos e ouviu tudo de novo. Em cores. De viva voz. De corpo presente. À queima-roupa. Cada palavra, um punhal. Ou um tiro.

Não havia o que fazer. De longe ou de perto, o mesmo resumo: não o esperava mais. Não o queria mais. Não lhe interessava mais.
Quis morrer, enlouquecer, desesperar-se, ele. Pediu uns dias. Recebeu. Depois só lhe restou aceitar. E partir.

Certamente não sabia do desfecho, que de desfechos nunca se sabe além da presunção, desconfiança, suspeita. E se soubesse, não teria feito diferente.
Agora, no 52º andar, a oportunidade ímpar, pois que lá não voltaria, para testar a eficácia das asas recém-adquiridas no mercado de pulgas.
Pediu no bar da torre um gim-tônica, uma dose de perfume, um narguilé. Abastecido, fitou a janela, declinou do convite, guardou a indumentária e voltou pra casa.
No corredor, despiu o casaco, sacudindo o resto do frio no assoalho.
Foi quando ligou novamente para ela, perguntando num fôlego só: - Posso então ser o seu melhor amigo?

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"São muitos os dramas,
desastres são poucos
".
(Última cena - Miltinho/Paulo C. Pinheiro)

26.7.09

O nó




Hoje não matei ninguém.
Saí de casa morrendo de tédio, graça nenhuma nem no sol pintando a rua de laranja-amarronzado-côr-de-infância, nem nos pardais, galos-de-campina, nem no campanário da igreja velha.
Parei no empório, na perfumaria, tomei café, comprei dois vidros grandes de loção pensando cítrico, pensando amadeirado, nada frutado, nada floral, nada doce, nada doloroso para as têmporas combalidas. Não, não comprei. Escolhi mas não paguei, portanto, não levei, as poucas notas espremidas umas contra as outras dentro da carteira de couro lustroso, preto, preta, esquecida sobre a cama, em casa, o constrangimento pelo olhar “logoviqueeralisa” - gentil retribuição da moça do caixa ao meu sorriso desbotado, desconfiado, envergonhado.
Fui andando, sem saber pra onde. Puxei do bolso, pela corrente, a bússola: agulha quebrada. Fui andando, então, sem Norte, sensação esquizóide, ao redor tudo ausente, distante, surreal. Fui andando me sentindo invisível, levitação da véspera de álcoois. Fui andando pra lugar nenhum, me sentindo um cão procurando pelas ruas um dono que já morreu, me sentindo um expatriado. Um apátrida - diria melhor.
Então fiquei triste, assim, de repente, e já não queria mais chegar.
E já me arrependia de ter deixado para trás o tédio, de memória o poema, a lembrança antiga guardada no livro de leitura perdido atrás dos passos.
Segui assim por mais de hora, ou foram minutos, já nem sei. Segui sem cobres, sem identidade, numa solidão maior que o corpo, achando estranho, um tempo estranho esse, de hoje, de tanta busca rasa, de tantas solidões.
Percebi que algo doía e instintivamente olhei para as mãos, lembrando do pesadelo da semana passada, quando sangravam, sangravam sem parar, e eu não entendia como de tão pequenos sulcos, feito fossem de unhas rasgando as palmas – e no entanto foram cacos de vidro –, escorria tanto sangue. Assim, o sangue escorrendo, sem nada ou ninguém para estancá-lo, havia cruzado a porta de saída, atravessado a noite, amanhecido. Fazia uma semana, e eu estava então dormindo.
Agora não, nem eram elas que doíam. Era o que eu não conseguia apalpar ou enxergar ou localizar.
Era um nó dentro de alguma víscera ou parte outra, aflorando depois do tédio, da tarde, do estranhamento, da memória, do sonho, da tristeza, no anoitecer.
Continuei andando, luzes desfilando sobre nossas cabeças, calçamentos deslizando sob nossos pés, os meus e de todos os outros, meus ímpares, meus iguais, da rua, das lojas, da calçada, do mundo, os que eu não conhecia, que não me viram, que eu nunca vi.
Luzes perdendo o foco, lâmpadas borradas, gotas de sal e rímel marcando o chão, João e Maria contemporâneos eternamente perdidos na selva urbana, os pardais bebendo as pistas.
Luzes se acendendo além do batente de entrada, da porta, onde um retângulo grande, branco, macio, onde um retângulo pequeno, branco, macio.
Onde agora repouso a cabeça e assopro o nó, a ver se o desato.
Isso porque fui só ali ver se estava na esquina. E me ocorreu que ontem, que nunca, que hoje, que jamais matei verdadeiramente ninguém.

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"Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro
"

(Lembrança de morrer; Álvares de Azevedo)

20.7.09

Enxadristas



Não, não é – repetiu.
- Não duvide! É todo o percurso dizendo que sim, a consultoria concordando, o cv, dossier, pqp, reforçando, mas eu lhe digo que não é. E digo mais: as aparências amarram os fios soltos do seu pensamento na contramão, invariavelmente. Se você as levanta, revolve, olha por debaixo delas, vai ver tudo com outro formato.
- Não duvide – repetiu, fio de voz, olhos baixos, apenas um pedido.
Mas duvidou, como sempre duvidava. A vida inteira duvidando, o tempo todo querendo entender de verdade, uma trajetória todinha em função de porquês. Coisa cansativa essa mania de querer entender tudo. Cansativo pra quem tem, pros arredores também.
Duvidou do bem, do empenho, da promessa, por ser da sua natureza duvidar; por ter um outro lado da moeda proporcional, que lhe fazia acreditar demais também. Duvidava muito, acreditava muito.
Continuou duvidando, continuou querendo acreditar.
Duvidou das palavras, que o mal é o que sai da boca do homem, que nem ouviu na musiqueta dos idos dos oitentinha, antes de saber que a frase era bíblica, que não teve educação religiosa, na escola pública. Em casa, pouco, pouco, e ainda não tinha, à época, se debruçado sobre o livro roxo.
Duvidou da boca que tantas vezes não calava o que não precisava ser dito.
E acreditou na mesma boca que percorria entradas fincando bandeiras, semeando fogos de artifício.
E acreditou nos entrelaçares da falta e do desejo.
É certo que queria, ainda, exaustivamente, compreender cada processo, gesto, ato, palavra, escolha, caminho, ausência, presença, desaparecimento, comparecimento.
Mas o tempo, o tempo era pouco, curto, veloz, e tanto, tanto a fazer, de tantas outras ordens e áreas!
Pensou sobre tudo, pesou e optou por intensificar o treinamento.
No dia seguinte, cedinho, sem falta, compraria um tabuleiro de xadrez.
E as peças, claro.

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Água mole em pedra dura
Mais vale que dois voando
Se eu nascesse assim ... pra lua
Não estaria trabalhando

(Guilherme Arantes, Aprendendo a jogar)

16.7.09

No loteamento do céu

Ainda as notas do samba ecoando na esquina que dobrei, guardei, botei no bolso de trás da calça, com cuidado para não amassar. Braço sobre o ombro de Blaise, fomos caminhando meio trôpegos até chegar à beira do rio, cimo da escadaria cujo primeiro batente varremos com folha de fruta-pão, limpando o resto do cocô dos pombos com nossos jeans puídos.
Ele estava especialmente alegre naquela tarde que se dissipava em minha quietude. Eufórico até. Recitou três ou quatro versos, bebeu cinco ou seis goles, discorreu sobre guerras, amputações, miséria e renascimentos. Blaise era assim mesmo, de uma capacidade inefável de se recompor depois de dilacerado - ou fulminado, como preferia - o que me ensinou um pouco a viver minhas próprias amputações simbólicas.
Perguntou-me, súbito: - Que dizia a música?
Cantarolei, Assis Valente tinindo na memória remota quase intacta: - “minha gente/ era triste, amargurada/inventou a batucada/pra deixar de padecer/salve o prazer, salve o prazer...”

Olhar perdido no afogamento do sol, contei que ali teve vez minha reconciliação com Capeto nos idos de mil novecentos e muito. E que ali fundamos nossa amizade. E que ainda outro dia fiquei triste, tão triste por ele.
Contei que amizade prezo mais que romance. E que mentira me assusta e incomoda. E que não sei de um, um só romance sem mentira.
Sorriu, só, meio-sorriso meia-boca, gravata amarrotada de noites insones, mangas dobradas deixando um braço à mostra.

Quando o sol morreu, voltamos para casa. Ele, com o chapéu cheio de pitangas: as que chorei. Eu, com o embornal cheio de palavras: as que me disse e as que calou.
Despedimo-nos na mesma esquina, que tirei do bolso, desdobrei, recoloquei no lugar.
Mesmo querendo esticar o tempo, havia que voltar, varrer bem varrido o assoalho do juízo, refletir sobre nosso encontro beira-rio, a mentira, a fantasia.
O que ao fim não me deu conclusão alguma, que nem Blaise veio à vila, nem a roda de samba toca Assis Valente, nem todo mundo é filho de Papai Noel.

E a verdade, essa continua morando do outro lado.
Do rio, do espelho.
Talvez em algum barraco da zona norte.
Ou em algum lote, no céu.


14.7.09

Habilidade




Usei a habilidade dos dedos para não prendê-los na armadilha montada para o rato, e ele nem olha para ela - espalha migalhas de biscoito champagne marca-própria no chão da cozinha, ignora o parmesão de 60 contos o quilo na ratoeira, apura os bigodões e focinho farejando o passado dos passos do gato retirante que partiu para sempre fugindo da prolongada seca do pires, me olha de soslaio - e eu, não encontrando a vassoura pra enxotá-lo, dou de ombros e me levanto e trago a vasilha e recolho o ranço do cajueiro bichado e as lágrimas do salgueiro-chorão pisando desavisada no rabo do preá que mora debaixo dele e me xinga de tudo que é nome feio, impropério, palavrões de cabeleiras inimagináveis e vai embora montado no cavalo-do-cão já encilhado e a postos pra viagem sem volta me fazendo perguntar que fenômeno fez sumirem todos os moradores do lugar, abandonando dom ratão à própria sorte e aos meus humores. Raspo o tronco do juazeiro, falta dentrifício na sala de banho e os sorrisos devem ser sempre luzidios, recomenda o ministério da saúde, disperso a nuvem de poeira que embota a mente do senhorio e o supõe super, por isso berra, agoniado, o coitado, safenado, corneado, desiludido e se não bastasse, militar reformado, e penso que vai enfartar de novo, que desconheço o número pra chamar a Samu, mas só quer ordem e disciplina na caserna e se cala e se aquieta e um dia ainda me mudo, juro, pro meio do mato, sem ladrão, sem vizinho ou senhorio, mas não agora, que ainda preciso de megapixels e lá não tem, então tiro as sandálias e piso o cascalho e ativo pontos energéticos nas solas dos pés, que é preciso energia, que o dia amanhece, que o pão integral cheira no forno e dom continua à espreita ignorando a isca, e não quero mesmo machucá-lo, então fico feliz, mas começa a faltar fermento biológico, que não uso o químico, e falta arame para a cerca e a cancela e não quero mais desalambrar que la tierra no es nuestra y tuya y de aquel nem o barbudo fez a reforma agrária, e o rádio já toca que o milho ondeia pra ser colhido e a pitangueira já deu flor e ainda há cestos a trançar e falta o cipó, por isso deixo a casa e vou ao mercado, que não quero mais tédio, nem ranço, nem caju, nada além do que falta, e ainda um baralho para a paciência.
Que o mais resolve a habilidade dos dedos.

6.7.09

Pesadelo

Era um alarido infeliz, uma zoada tão cachorra da moléstia, mais parecendo todos os diabos do mundo reunidos pra acordar pedra e madeira. Todos juntos numa caixa, troando.

Insistiu até conseguir, dormir, e sonhou. Sonhou nas profundas, em visita, na entrada do portão, tête-à-tête com Cérbero que lhe deu passagem sem rosnar ou ranger de dentes.

Não sabe quanto tempo vagou por lá, meio aos uivos e gemidos, entre os galhos retorcidos, no frio, na escuridão.
Não sabe quantas almas viu, quantos conhecidos, amigos, inimigos, colegas, parceiros.
Não sabe se teve medo ou solidão.
Então pensou nele, tão alto, tão alto, chamado, pedido, apelo.
Então pronunciou seu nome. Três vezes. Meio às sombras.
Então esperou.
E esperou.
E esperou.
E esperou a vida inteira, desde sempre, até o fim de sua longa noite.
Até a luz da manhã ferir-lhe os olhos.
Até se instalar o nunca mais.


22.6.09

Mensagem




Não, o carteiro não chegou nem seu nome gritou, do portão. No entanto, escreveu, finalmente, a carta. Já não conseguia escrever há algum tempo, o corpo que habitava, inerte, quase, não fossem os tremores nas mãos.
Procurou os óculos sem aflição. Releu:

"Mesma cadeira, a mesa, a mesma. Mesma pimenta no prato, e não é refresco, no copo rubro de agora. Uma taça, aliás. É outro o dia, outra a companhia de olhos postos sobre a toalha xadrez, verde, vermelha. Outra cena e algum torpor se espalhando pelas extremidades, o suficiente para me dar a calma que preciso para lhe contar de quantas perguntas ainda tinha a fazer. E calei.
Hoje é outro o momento, e eu repito que nada mais volta como era. E você refaz um caminho com outro andar, seguindo a indicação do gato zombeteiro, mordiscando, cá e lá, pedaços de chapéu-de-sol, encolhendo, esticando, cabendo, sobrando.
Penso agora em parar de morrer, senão vou acabar fumando. Não, o que eu queria mesmo dizer era que talvez precise morrer, senão vou acabar parando de fumar. Não sei, estou confusa, mas você entendeu, acho.
Não sei quando comecei a odiar os pombos, essas criaturinhas divinas e insuportáveis que me remetem sempre ao cinza, ao frio, à solidão, à rapinagem oculta nos seus doces arrulhos. Mas eles vêm, destemidos, e dou a eles migalhas do meu pão dormido, então na verdade não deve ser ódio. Talvez ao que representam(?).
Um momento particularmente delicado, por razões que não lhe interessam agora, sem a reprise do acometimento.
Eu uso deliberadamente suas palavras e tenho certeza que você as reconhece quando as vê, arguto que é.
Ainda sobre aquele momento, desfaço o suspense: não havia nada. Era só a vida, o descaminho. A dor do mundo, a dor dos outros. Passou há muito. E chegou de novo e se foi.
Não ria, não, mas eu juro que é o inverno que faz coisas assim. Precisei falar com você sobre isso tudo que é tão tolo e por todo esse tempo. Tive a impressão idiota que só você compreenderia. Mas eu não sabia dizer. Quis escrever. Mas minhas mãos estavam frias. Quis pensar. Pensei melhor e decidi jogar cartas e cometer assassinatos de preciosos segundos, minutos, horas, dias. Quando tudo acabou, escrevi esta carta que você está lendo neste exato momento de nossa inexata vida.
Vou em férias para a terra do sol. Porque descobri que não há ninguém. Absolutamente. Nós somos a nossa própria terra do sol. E dispomos sobre o seu-nosso solo, nuvens e temporais. Essa a nossa expiação. Inferno. E maravilha.
Não preciso mais implodir as tomadas. Venci o vinho.
Não lhe mando um beijo. Antes um abraço, apertado, de corações perto, sem aqueles seus tapinhas de consolação, nas costas, que um dia detestei com todas as forças do meu ser.
Não lhe pergunto nada mais. Nem mais lhe digo até a chegada da primavera.
Mergulho na biblioteca, vou ter coragem para apedrejar os pombos, para assustar os pombos, para espantar os pombos. Uma dessas alternativas, pode apostar.
Colha flores. Desembainhe espadas. Faça amor. Faça guerra.
Santé!"

A chuva parou ao fim da leitura, Vanuza cantando no rádio enorme, quarentão enxuto, estrela da sala-de-estar: "e assim pensando rasguei sua carta e queimei para não sofrer mais".
Sai dessa, Vanuza! - pensou, olhando a carta que não foi mandada sobre a mesa. E sorriu.

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"Hoje é sábado, amanhã é domingo. Não há nada como o tempo para passar..."
(Vinícius de Moraes, O dia da Criação)

17.6.09

A título de sugestão




Nada, nada engraçado seguir adiando a vida, o piano de cauda mofando na biblioteca, eternamente fechado à espera de dedos hábeis, sem quem sequer tente descobrir a que carícias responde;
o vestido, também de cauda, lhe fazendo coro, desafinando na escuridão do armário, resistentes, os dois, às traças do tempo;
a toxina botulínica perdendo a validade, inútil contra as rugas da alma;
os relógios incapazes de fazer retrocederem os anos;
a sucessão de páginas brancas no diário empoeirado;
o livro esquecido;
a fronteira não cruzada;
as nuvens não varridas, turvando o horizonte.

A mesa ordena: façam suas apostas. E você já perdeu antes mesmo de jogar.

Tomates apodrecendo, folhas de rúcula murchando, pimentões perdendo o viço, o azeite derramado e a cozinheira morta.

Antes da fome, corra para o mar, lave as dores com o sal do mar, adorne-se com as algas do mar, vista-se de maresia e volte no rodopio do vento.

(Sim, é a estação a grande culpada da falta de movimento. Há que deixar portas e janelas escancaradas, há que deixar entrar o vendaval que se anuncia;
que derrube quadros, que revire cantos, que revolva a casa inteira e a vida e varra rua afora o imobilismo a descrença a desesperança o sabor acre de tempo perdido o desânimo a desistência.)

Corra para o mar e banhe-se do novo, e seque-se com o sopro do novo, e faça um caminho novo e ignore o frio e ignore a chuva e construa o seu ramalhete particular de raios de sol e reparta ainda com quem os quiser.
Só então prepare a salada, ingredientes vários, frescos, coloridos e alimente o corpo e aproveite o dia e desperte. E viva. Sem adiamentos.

Se puder.

8.6.09

João, Chico e as abelhas




Voltaram as abelhas. Chegam por essa época do ano, de floração dos cajueiros. Voltaram, com seus zumbidos e ferrões. Vem uma, entra, chegam mais duas, três, cinco, mergulham no café quente, enfiam o ferrão na língua do bebedor distraído, rodopiam pelos compartimentos todos até irem parar no resto do açúcar do fundo das xícaras, chávenas, açucareiro.

Voltaram as abelhas, com a chuva e o mau tempo.
Perto do dia de São João, festa da colheita, festa do milho, que enchia de fogueiras as ruas de areia da infância, de fogos e balões o céu, de bandeirolas as casas e o grupo escolar, quando as quadrilhas não eram mais que dança ou bandos nas histórias em quadrinhos.
Nas adivinhas de Santo Antônio, rostos na garrafa, nomes escritos a leite de bananeira nas facas, a água na bacia, o pedido pelo príncipe consorte feito pela princesa sem tanta assim.
Tempo de vender e comprar balaio e voto de rainha do milho, chita pro vestido, fita pro cabelo, galão, bico bordado, sianinha. Tempo sem pressa nos armarinhos de aviamentos.
Dia assim nasceu o caçula lá de casa. Contam que seis da tarde. Véspera de São João. Hora da fogueira. Mãe preparando pamonha. Pai mexendo o tacho da canjica. Irmão mais velho apanhando da lenha molhada, dura de acender.
Pra menina, só chumbinho. Estrelinha. Cobrinha, no máximo. Pra menino, bomba-bujão. Era pra ser assim por lá, mas quem obedecia? Misturava-se tudo. E um ou uma saindo chamuscados no final.

Voltaram as abelhas, com a chuva e o mau tempo. E o são João como era, não volta mais, que nada volta mais como era.
Só se renova. Só se refaz.
Já ontem nasceu João, neto de Chico - o caçula lá de casa.
Chegou com as abelhas de flor e mel.

Pra adoçar a vida. A festa do milho. E o mês de São João.

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E os meninos da rua fizeram um belo balão
Com as cores dos olhos e a forma de um coração
Ai que belo balão os meninos fizeram de um sonho
Ai que belo balão pra ir lá no fundo do céu
Pra pegar todo o mel e adoçar a vida...

(Belo Balão; Gonzaguinha)

3.6.09

Panfleto



Companheiro,

Nasci com o grave defeito de acreditar
E cri no tempo solar alardeado pelos arautos do amanhã
E fiz a arrumação juntando gente em torno do manifesto
- nosso evangelho depois do fim de tempos cinzentos
Já se vão duas boas décadas ou mais desde então
Malograda a revolução,
Restou no espaço
O vácuo
Sem luz
Ou oxigênio
(em uma serra não longe de onde nasci há um lugar assim
a gruta da Santa onde não rezei, mãos postas em contrição)

Segui crendo na vida No amor No humano No mundo
Tantas vezes fui tola
Tantas ridícula
Tantas patética piegas risível
Umas – disseram – poética até
Muitas me deixei enganar, incontáveis
E dizia: nunca mais
E à frente, seguia crendo
E conclamando a crer outros mais
Até cair no vazio
Este, cri encher de sons e palavras
Escrevi tantas cartas e todas enviei
e se extraviaram e voltaram e encalharam em ilha qualquer de terra inóspita
Onde as respostas?
Não se as tinha
E me afoguei em fontes fermentadas
Destiladas
E ressurgi com mais solidão
Morri de tédio
Medo
Dor
Experimentei o infindo suplício da fênix sem nunca conhecer o repouso do guerreiro
sem capitular
Limpei tudo ao redor
Arrumei a mala e não parti
Perfumei as orelhas, atrás, trancei cabelos, a porcelana japonesa deslocada na austeridade da cabana
Espantei ratos e suprimi sua ração
Varei noites madrugadas auroras pés descalços no espinheiro na plantação ressequida nenhuma flor nenhum fruto no jardim no pomar
Ninguém me adivinhou chegar pelo som dos tamancos
Nem soube dos desertos nem das tempestades
Nem da solidão inflando paredes
Nem da água salgada lavando o chão da sala regando solo estrangeiro limpando alma olhos espelhos
Do amor sem fim precipitado
No mesmo vácuo de outra era

Companheiro,
Parva, atemporal, sigo crendo.
Sem saber dizer o porquê.

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“Nós, gente do povo, sentimos tudo, mas não sabemos nos exprimir; temos vergonha, porque compreendemos, mas não sabemos dizer o que compreendemos. E muitas vezes, por causa desse embaraço, revoltamo-nos contra os nossos pensamentos. A vida bate-nos, tortura-nos de todas as maneiras e feitios, queremos descansar, mas os pensamentos não nos largam.”


(A mãe - Máximo Górki)

1.6.09

Uma estrada



Poderia ser o reinício do trabalho tantas vezes interrompido, fios perdidos da meada-matriz, soltos do novelo-pai.
O piche da estrada divide em duas a mata apontando o caminho da casa sem rosto - nem o seu, nem o meu - cornucópia de sons e letras, descontínuos, incongruentes, e eu nada escrevi no diário que na verdade não tenho, pois nem bem sei dos dias nem de traduzi-los, como também não escrevi as cartas que não enviarei esperando se desmancharem no amarelão do tempo, no festim das traças e dos fungos da invernada que se avizinha.
Lamento a ingenuidade repetida e ouço de memória: "não sou eu, é o mundo que é assim". Mundo que eu queria outro, melhor - claro - ainda que à força de conservantes contra a decomposição veloz, voraz.
Cinco passos à frente de onde agora está há um esboço de futuro. Peso do mundo sobre as costas, óculos, tez morena, ouvidos selados, lacre inviolável, alaúde sobre a cabeça, seu olhar distante nos remete às ruas do Marais onde catávamos moedas à sombra do arco-íris, pães por notas musicais, tempo do frio, longínqua felicidade adivinhada pouco antes de acordar.
Na janela, os cortes de estrada avermelham a passagem - barro e capim, saudade agreste, galpões abandonados. Sem saber aonde vamos, refaço o projeto da casa redesenhando os galos-de-campina, a bailarina rodopiante da caixinha de música, os vidros coloridos nas prateleiras, o espelho trincado sobre a penteadeira.
Na janela, não passa boi nem boiada, só o verde fosco do canavial e a moldura plúmbea das chuvas em formação entorpecendo pálpebras.
Não, não é a emenda dos fios partidos, apenas um pedaço de caminho, apenas a descontinuidade de depois da curva, o ponto de chegada desconhecido, o desenlace obscuro, a bola de cristal quebrada e o aviso de interdição na placa sobre a fonte dos desejos: não mais que um dia por vez.
E nossa desobediência.

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Na gelada solidão,
Que tu me dás coração,
Não é vida nem é morte:
É lucidez, desatino,
De ler no próprio destino
sem poder mudar-lhe a sorte


(Maldição; Alfredo Duarte - Armando Vieira Pinto)

26.5.09

Seguir tem sublime sucesso



* "[...] A perseverança é favorável. Nenhuma culpa" - leu, esperando o sono chegar e ele não vinha.

Deixou acesa a ponta do cigarro no cinzeiro, a fumaça empesteando a sala, ora em espirais voláteis a caminho da lâmpada eternamente acesa, ora em círculos perfeitos buscando a janela, como ocorre quando alguém está pensando em nós.
Ela limparia compulsivamente os cinzeiros, todos eles, repetidas vezes, e ele olharia com atenção para ver se descobria onde estavam as pernas daqueles cinzeiros que sumiam e nunca voltavam, indo parar sozinhos sobre a pia da cozinha, sempre limpos, sempre molhados. Cinzeiros adestrados.

Os sapatos e sandálias se espalhavam pela varanda, no corredor, no banheiro. Decerto não causariam nenhuma catástrofe assim, fora do lugar. Então por que ela se importava?
A louça suja sobre a pia, a roupa amassada sobre a cama, a porta da geladeira apenas encostada, a luz do banheiro acesa e ela já não tinha mais ataques de nervos, já aceitava a desordem como parte da nova ordem da casa, já não achava que interferiria no destino da humanidade.

Ele queria que ela esquecesse as badaladas da meia-noite e apurasse os ouvidos para os acordes da madrugada anunciada.
Ele queria que ela deixasse de pensar em Reykjavik apenas como o acesso ao caminho para o centro da terra.
Ele queria que ela despisse suas peles e armaduras e couraças, nem tão hermética, nem tão teimosa. Não era muito. De vez em quando, que criasse asas.

Explicou-lhe a síncopa do samba, e ela fez que entendeu.
E lhe falou das capitais de todos os países do mundo. E sobre cada uma delas espetava um alfinete de cabeça colorida, no mapa, sinalizando por onde já haviam passado.
E ela ria.
E apertava os olhos.

E os anos, como bem sabem fazer, transcorreram, lépidos mas não fagueiros.

Então nada mais estava lá.
Desaparecera a cama, a casa, a cidade.
Desapareceram os livros, os discos, os instrumentos.
Desapareceram os olhos infantis.

E ele acordou tateando no escuro, ofegante, coração aos pulos, mãos apressadas percorrendo lençóis.
Medo.
Aflição.
Alívio.

E cuidado. E silêncio. Para não acordá-la, que nunca mais queria acordá-la.

Só para despertar à noite e ter certeza que ela ainda estava lá.

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*do livro das mutações, de R. Wilhelm

14.5.09

O Palácio do Dragão




Volto ao palácio do dragão, palco do nosso banquete primeiro. Estávamos então famintos, embora saciados. Éramos ainda estranhos um para o outro ou quase, nada além de uma nova ilusão, cães matinais, apenas um rapaz ciumento, divina dama. Ainda das árvores aos postes, as bandeirinhas, papel de seda, origami de formas várias; Maria dos Santos sem saber se hoje é noite de São João me olha com olhos redondos negros saltados e nada responde - olhar de interrogatório, de interrogação.
Ouço a voz dos dois: Rispidus, Docilis. São dois cães gêmeos, da mesma ninhada, às vezes se fundem em um e assim me confundem sempre mais, surpreendentes sempre que penso ser impossível que me confundam depois que me saltaram sobre os ombros quase me dilacerando a garganta, enfiando suas garras abaixo, rasgando o peito, raspando o coração - filete, fino fio de sangue, vertente mal cicatrizada - até se mostrarem enfim confiantes, finalmente amistosos, afetuosos até.
Impossível não sentir o cheiro da grama cortada da terra revolvida na primeira chuva, embora não chova agora nem chovesse naquele fim de manhã em que me enlaçou, estreitou-me, segredou-me em sussurros seu medo, a dor, a morte, a estupefação, o dia em que se sentiu absolutamente só e dispensável ao mundo e à vida.
Discutimos os novos rumos da política do café com leite, o sexo do band leader dos rolling stones, meu total desconhecimento da língua inglesa, da arte gótica, da física quântica, de sustenidos e bemóis. Sua ignorância completa do movimento das marés, dos signos astrológicos, do segundo círculo do poder, da conjugação do verbo être.
No saguão do palácio do dragão, tudo isso em menos de meia hora, até a despedida final, até logo, nunca mais nos vemos, deixa assim, quero sim, quero não, bandeirolas ao vento, dança do papel nacarado, vermelho-sangue, fúcsia, salmão.
Até o dia dois, o dia três, o dia quatro, os toques ininterruptos do telefone, acordes dissonantes, coro de sapos, dois perdidos numa noite longa, abat-jour lilás, bachianas brasileiras, tremendão, inferno astral, orgasmos múltiplos e o tempo infinito de um minuto em frente ao palácio do dragão.

5.5.09

Ritual


Um belo dia, não era belo. Um dia aí, qualquer, passado, tinha resolvido queimar as cartas, todas, todas. Cartas de baralho cigano, cartas de tarot. E cartas de amor. Chamas azuis, amarelas, vermelhas, consumindo o papel, queimando as manchas de sangue e perfume.
No dia, cinza porque chuvoso, chegaram os cupins, voando, famintos, infestando a casa. A mãe dizia: formiga quando quer se perder cria asas. Os cupins querem se encontrar, decerto, quando criam as suas. Em usando pedra de amolar, capaz de roerem até madeira de lei, na porta da frente. Pelo sim, pelo não, melhor não esperar.

Meio ao dilúvio, preparou o capote. Enfrentou as águas inclementes que invadiam o planeta até chegar no primeiro banco de areia, 12 km mais tarde, 20 minutos mais à frente, onde viu o canal. Subindo, deteve-se no meio da ponte, medindo a altura do salto. Precipitou-se, o fôlego curto de fumaça, braços e pernas obedecendo, até a margem. E os olhos divisando a luz ao longe, nada mais que neon, imitação barata da aurora sonhada desde o início dos tempos.

Que fôra fazer no pântano? Buscava o quê, além de fugir dos cupins?
Meia volta sobre os calcanhares, sobre a ponte, pelo asfalto, até o posto primeiro, bainhas e mangas arregaçadas.
Até o posto primeiro, de onde viu voarem zunindo pela janela as tralhas devedoras do lixo há três ou mais décadas.
Coisas, trecos, badulaques, deixaram vazios quatro cantos. Partiram as traças e os esqueletos do armário e a ânfora do vinho daquela noite, vinagre do amanhã, no mesmo arremesso.

Lustrou o pinho do rés do chão. Verteu na banheira sueca essência de lavanda. Dispôs na sala de banho os frascos e incensários, flor de bergamota e jasmim.

Pôs a mesa. Vidros coloridos, licores, chocolate, amêndoa, hortelã, framboesa, amora, groselha, ananás. Bananas, goiabas, carambolas, ciriguelas, mangabas e cajus. Os romances clássicos, os regionais. Calados, sobre o criado, mudo também.

Na vitrola, os címbalos e a rabeca.

Preparou o banquete sob a lua crescente, meio às mariposas, media-luz, meio-medo, meia-alegria.
Na rocha sob o frontão.
E convocou as outras para o Sabá.

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"Um lugar deve existir
Uma espécie de bazar
Onde os sonhos extraviados
Vão parar
Entre escadas que fogem dos pés
E relógios que rodam pra trás"


(A moça do sonho; Chico/Edu Lobo)

27.4.09

Estações




Entre as paredes de silêncio, mofo, lesmas, chuva. E o sopro da vertigem. E a imagem. E o medo.
No recinto, nada. A parede é branca, a parede é fria, a parede é amarela, a parede ignora, a parede não responde.
As paredes têm ouvidos, de mercador. As paredes têm línguas que ferem o mármore, lápide dos vivos.
Das paredes brotam garras que arranham os espelhos onde escrevem a elegia dos mortos.

Fora, os pingos nas pedras do chão. As gotas de lua nova encharcando a escuridão dos morcegos, as veredas do louva-a-Deus, a clareira onde pousa, verde, quieto, mãos postas, gravetos em oração.

Onde moro fica assim quando inverna em mim.

E é só uma pequena casa entre outras pequenas casas.
E é só um tempo e um lugar, perdidos, em idas e vindas sem fim.

E é templo.
E é abrigo.
E é palácio, do ouro da luz e da canção.
Sem torres, sem fossos, sem gaiolas, sem rouxinóis.

E é jardim. Horta. Pomar.
Então planto sonhos na soleira da porta, no meio das açucenas, debaixo do cajueiro-bravo, na sacada, entre samambaias.

Então planto sonhos nos rosais, com as pontas dos dez dedos verdes, como na Miraflores de Maurice Druon.

Então planto sonhos na cumeeira, no terraço, no oitão.

Para que nasçam nuvens.
Para que brotem estrelas.

Para que primavere em mim.

15.4.09

cama-de-gato, pau-de-sebo




Cama de gato - jogue o jogo desenhando figuras sem prender os dedos. Muda o movimento, muda o desenho. Duas, quatro mãos, um novo desenho.
Cama de gato - trance os fios, dedos ágeis, hábeis, velozes, tecendo a teia onde vão se enredando dúvidas e certezas, luz e trevas.

E quem não quer se enredar faz credo em cruz, esconjura, bate três vezes na madeira (três, Mariahilma contou, ensinou, revelou, é quanto se repete uma coisa pra que vire decreto).

Bate na madeira, pois, de virola, isolante termo-elétrico. E no entanto, condutora de calores e de choques, quando madeira de leito, tábua dos sacrifícios, mesa de banquete.

Na cama, a receita é simples: pra abafar o cheiro forte da virola, três demãos de verniz, uma dose de disposição, um bom motivo. Encobrem, além do móvel, as intenções e o diabo a quatro. As más e as boas e muitas, das de encher toda a extensão do vasto inferno.

Da virola se faz também o pau-de-sebo, um pau escorregador onde em cima tem dinheiro pro primeiro ‘achegador’.
Quem não brincou e não viu, não viveu. Velhos tempos, belos dias. Há, pois, um ‘mói’ de gente que desconhece o suplício do escorregamento do esforço vão da queda da platéia se rindo aplaudindo pedindo bis e só desejando ser feliz.

Se eu fosse criança voltava a brincar com os dedos.
Se eu fosse adulta trabalhava em marcenaria.
Se eu fosse sábia, não brincava de cama de gato, nem de pau de sebo, nem ia querer saber de todas as utilizações da virola, de todos os desenhos dos cordões.
Se.

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mas não me queixo dessa sorte, eu sou um comodista
E ainda me chamam por aí de verdadeiro artista
e a platéia ainda aplaude, ainda pede bis...


(Pois é, seu Zé; Gonzaguinha)

7.4.09

Sonho de fim de verão




Estávamos na praia, eu e ela, ela e eu. Ela contava então oito, nove anos. E no entanto era hoje.
Ela corria com outras crianças. Na direção contrária.
Eu advertia: não tem mais ninguém lá. Todos estão voltando à casa. A maré está enchendo.
Sentamos no batente. Perguntei: gostavas de mim?
Disse, distante: gosto. Gostava.
Lembras que eu cozinhava para ti?
Lembrava. Desfilou as comidas que eu fazia. E eu já nem lembrava mais.
Entramos na casa. Assistimos o recital. O monólogo. A mulher, lábios grossos, encenava, nas mãos uma criança de colo. Um menino. Moreno. Sujo de barro. De se arrastar pelo chão. Ela lhe ensinava a vida como era.
Amarrou uma de suas mãos a um caibro, a direita. Amarrou um de seus pés a outro, o esquerdo. Ele se debatia, pendendo, sem chorar. Havia carinho no gesto, iniciático. Assim lhe ensinava a mobilidade sem a liberdade. Dizia-lhe coisas, muitas coisas, sobre a espera, as batalhas, a força, o amor.
Ele contracenava. Assistíamos.
Acordei.
Hoje ela se perdeu de mim. Eu me perdi dela. E a amo. Ela, não sei mais. O que esconde atrás da raiva nos seus grandes olhos azuis? Em que gaveta trancou as nossas noites, nossos contos, nossas tardes à beira-mar, nossos jogos de pedrinhas, as roupas de boneca, os bolinhos de chuva?
Em que curva, esquina, encruzilhada, nos dissemos adeus? Em que navio, ônibus, avião, partiu pra não mais voltar?
Em que tempo trará de volta a ternura nos seus grandes olhos azuis?

Os sonhos não trouxeram as respostas.



Clareia manhã, clareia
Abre os teus dedos manhã
E deixa essa casa cheia
Do teu cheiro de romã


(Aurora, Ednardo/Belchior)

5.4.09

O TGV

- Quer um TGV?
Foi ele quem perguntou, óculos rayban, lentes espelhadas, lenço amarrado na cabeça à la ‘que é que a baiana tem?’.
Parecia um desenho. Parecia saído de um filme infantil, de uma história em quadrinhos, esqualidus, ismilingüido, professor Girassol.

Não seria má idéia - pensei. Deixar a plataforma, embarcar no Trem de Grande Velocidade, paisagem difusa voando na janela, 200, 250, 300 km por hora, veloz e furiosa, veloz e apaziguada, veloz e distante, veloz e ausente, veloz. Pela módica quantia de 25 pilas, preço para estudante, cruzar tantas cidades sem vê-las. Sabê-las lá. Fora do trem, dos vidros das janelas, da ordem de visitação, fora. De mim. Do interior à capital. Em alguns piscares de luzes e olhos.

- Quer um TGV? - repetiu.
Pensei: - pra que tanta pressa, doutor?
Responderia, talvez: - quem é coxo parte cedo, ‘dona’.
Ou ‘tia’. Ou ‘madame’. Ou ‘senhorita’. Ou ‘moça’. Ia depender dos filtros ativos nas lentes espelhadas. Da boa vontade. Da hora da festa. Do humor. Da clientela presente no local. Do quadro comparativo. Dependeria.
Que cada filtro depende do momento.
Como nas relações.

(Houve um homem com quem dormia.
Certa vez afirmou: - ajoelho-me aos pés da minha rainha.
Houve um homem com quem dormia.
Certa vez me confessou: - eles têm medo da sua cara feia.
Eram dois momentos.
Era o mesmo homem - riacho e dialética à parte.)

Eu devia uma resposta ao rapaz de lenço, voltando ao TGV.
A pergunta, por sua vez, era também uma resposta. A uma provocação.
Disse: - sim, quero. Obrigada.
Por querer.

Também ele era veloz. De tanto lidar com TGVs.
Era o garçom do bar, a quem perguntara, eu: - nada aqui que embriague?

O TGV, uma bomba: tequila, gim, vodka. Num copo só. Demorei, no entanto, a responder.
Ele, desconsolado, se desculpando, quase, por trás das lentes: - a tequila acabou.
- Tem absinto?
- Absinto muito. Também não.

Gosto do balcão, ninguém aporrinha. E sempre dá pra beber algo misturando umas gotas de elixir de invisibilidade. O meu algo tinha dentro folhas de hortelã. E a título de consolação - na falta do T - o G e o V.

Sumiram num trago, GV, balcão, garçom.
E porque perdi a hora, o trem, a viagem, quedei-me na plataforma mesmo, silente, rodopiante. Paradoxalmente, efusiva, taciturna. Invisível.

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Pegar o trem para o passado. E voltar bem mais feliz...
(De Chicago a São Luís – Moisés de Lima/Graco Medeiros)

1.4.09

Temporão






Passa da meia noite e você prega.
Ninguém perto.

Para quem?

Gemidos, sussurros, gritos - que seja - reverberam no deserto.
Só sons morrendo nas rochas:
surdas, imóveis, silenciosas.

Sons, sós.

Como eu.
E você.

Passa da madrugada, você me pede água.

Só uma fonte que secou, e lhe mata de sede.

Uma história de infância, distante: - "não parta a melancia longe dessa fonte.
Que a princesa, dela nascerá: bela, sedenta. Sem água, resseca. Vira pó em um instante".

Passa do meio-dia.
Seu corpo queima no sol escaldante.

As rugas lembram que hoje não é antes.

A via cobra pedágio.

A vida, tributo.

Existir em liberdade – quem dera?
Voltamos às correntes, às masmorras
Aos grilhões, às galés.

(Verto em rimas pobres tudo o que me assombra. Nada nobre, pouco cobre. Nada de poesia, nem de prosa. Arremedo, escombro, sobra. Talvez sobrem muitas sombras.)

Passa da hora do Àngelus.
Esperam por nós e o que não seremos, tutti bambini:

- os que não fomos;

- os que não fizemos.

Passa da hora de fazer silêncio.
O toque de recolher ecoa aqui por dentro.
Recuso-me o discurso do abstêmio.

Meu peito: incêndio.
Minha paz: o vento.

Lembro, penso, sinto, sento.

Escrevo.

Agradeço.

Regozijo-me.

Tudo dói.

Arrebento.

Resisto.
Renasço.
Entorpeço-me.

Se serve de consolo: não durmo ao relento.

Na verdade, passa da hora, muito.

E nada sinto:

invento.

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"Agora, já passa da hora
tá lindo lá fora
larga a minha mão
solta as unhas do meu coração
que ele tá apressado
e desanda a bater desvairado
quando entra o verão
"

(De todas as maneiras, Chico B. H.)

"Campineiro do meu pai
não me cortes os cabelos
minha mãe me penteou
minha madrasta me enterrou
pelos figos da figueira que o pássaro bicou
"

(Tradição oral, autor desconhecido)

26.3.09

Quando a lua mudar de fase

Quando a lua muda de fase o corpo incha, enche de líquido. Pesa. Pende. A loucura é sutil, não de correr doido, na rua; nem de carteirinha; nem de jogar pedra. É quase loucura santa.

Quando a lua muda de fase, resolvo num piscar de olhos, estalar de dedos, rápido como quem rouba, cada equação.

Sonho de novo, acredito, de novo. Amo. De novo. Reinvento a vida. Ignoro o medo, o tempo que voa, a morte iminente - sombra furtiva rondando esperando assombrando, sempre, cada esquina.

Quando a lua muda de fase, viro Gagarin. Sobrevôo a Via Láctea montada no dragão de Jorge. Guardo o macacão de operário, a fantasia de perua. Visto a roupa do carnaval, do São João, do Natal.

Quando a lua muda de fase me encolho sob o lençol. Reúno óculos livros chá verde cartas de amigos canetas papel segredos memórias confissões. Desligo o mundo, a tribo, a aldeia, a rede, o rádio, sem culpa precipito no vaso sanitário aparelho de telefone, endereços, catálogos. Ilha, me refaço.

Na última fase não foi tão grave. Andei léguas a pé. Quando vi era outra cidade.

Quando vi era outro país.

Quando vi estava só.

Quando vi não era ninguém.

Quando vi era triste de morrer.

Quando vi era outra vez feliz.

Não sei o que vem na próxima fase.
Mas quando a lua mudar, dessa, me mudo também.

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"O toque de sonhar sozinho
me leva em qualquer direção
de flauta, remo ou moinho
de passo a passo passo...
"

(Fadas, L. Melodia)

14.3.09

A fenda

Havia uma brecha no tempo. Várias, aliás. Dos lados, embaixo, em cima. Frestas, fendas, buracos de fechadura. Todas pequeninas. E nelas cabiam muitos, que sempre cabe mais um.

Um minuto, um chamado. Um segundo, um convite. Uma hora, uma retirada.
Um plano de vôo, um plano de fuga, um mapa da mina, uma rota de navegação.

Uma nau, um capitão. Um mar revolto, agitado feito o mar da história.
E içava a vela. E cortava as ondas. E vencia a tempestade.

Uma planície, um cavaleiro. Rocinante à espera. Escudeiros atentos.
E olhava os moinhos. E combatia os gigantes. E cruzava o fosso.

Cada fresta, uma travessia. Um vaso de vinho. Um redemoinho.
E o tempo, elástico, esticava, encolhia.

Havia que conduzir, sim, a duras penas.

Palavras demais, perguntas demais: não te ensinaram o silêncio? Outra pergunta.

Nada pessoal, aliás, tudo é tão impessoal quanto moderno. Quanto passado.
Obsoletos o flerte, o amor, a fé. Em desuso, feito trema.
Que teimo. E uso.
Mas era o tempo – e não o trema - o tema.
Era o que roubei do tempo. ‘Não roubarás’ - pensei no catecismo. Nem havia feito a primeira-comunhão, a confirmação do batismo. Então, invalidava o primeiro ou os mandamentos?
Roubei. Um pouco, pouquinho só. Não me condena em nada. Se sim, o Juiz me absolve: furto famélico – dirá. E se comove. Roubei uns naquinhos de tempo. Se juntar todos nem cabe numa volta inteira do maior ponteiro do relógio. Nem em meia volta.
E entrei por essa fenda do tempo. No tempo de um raio. Intenso. Fugaz. De luz.

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Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo tempo tempo tempo
Num outro nível de vínculo


(Oração ao tempo, Caetano Veloso)

12.3.09

Quem não sabe assoviar

Eu vou fazer uma canção de escárnio e maldizer, uma canção de mal-casada, uma canção bordada com fios de urtiga. E jogar na rede de intrigas.

Eu vou fazer uma canção medieval, um canto gregoriano, compor um jogral. E recitar na farra do Juízo Final.

Eu vou fazer um canto de trabalho, uma canção fabril. Com dois metros de seda javanesa, azul e encarnada, empurrar Diana de cima do muro pra brincar o Pastoril.

Eu vou fazer uma marselhesa brasileira, marcha-rancho libertária, um hino nacional. E entoar no próximo carnaval.

Eu vou fazer um canto de sereia, canto minimalista conjurando águas, sonoro haikai. E lançar sobre o fogo do Monte Sinai.

Mais poderia dizer. E não digo.

Se nem mesmo sei assoviar cantigas de amigo.


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Ouvir rock, ver a chuva, beijar uns lábios, deitar com uma ou outra carne na cama e sentir o sexo. [...] Será que o rock, a chuva e o sexo não passam de infância e que só a infância presente existia? Só a infância presente existe! Lembre-se disto: só a infância presente existe!

(Jorge Mautner, Deus da Chuva e da Morte)

Minha canção há de brilhar na noite, no céu de uma cidade do interior.

(Objeto não identificado, Caetano Veloso)

10.3.09

Na ladeira

Subi a ladeira, na costa, ondas despedaçando espumas, depositando, revolvendo na orla sedimentos, partículas de arrecifes, enchendo o ar de respingos, sal, maresia, tarde morta, balão amarelo, plenilúnio de fim de verão, rádio tocando 'a vida é bela, o mundo apodrece'.

Valsa de um tempo sujo, o mundo apodrece calcando poeiras revirando almas, sebosas, penadas, perdidas.

Subi a ladeira brisa molhada no rosto e não me resguardo, não me refaço, não me regenero, não me alimento, não regurgito, não perdôo.

Não perdôo os poucos amigos, não esqueci os poucos inimigos, não li o jornal, não sei do estupro, do apedrejamento, da excomunhão, do Mereto, dos bordéis da rua Augusta, nem canção nem plenilúnio, não me abstenho nem compareço.

Subi a ladeira, tardei, morri, fugi, não me chame, não pretendo ir.

Só daqui vejo a lua cheia, a noite nova, a vida breve, a onda forte, a pressa calma, só aqui não entendo nem preciso entender.



"Saí do palco, fui pra platéia.
Saí do pátio, fui pro porão.
"

(Sérgio Sampaio - Cabine 103)

4.3.09

Tapete vermelho



Por trás da enorme catedral abandonada, a janela, maior que uma pessoa média, vitrais azuis, quebrados.
Subiu a mureta, esforço impossível que deu certo, passou entre as 'ctites e 'gmites de vidro, sem estalar.
Dentro da ruína a névoa do quase pesadelo. A moça embalava a criança, no colo. A moça que seguiu na frente, deixou cair no meio-fio a pulseira de ouro.
Subir, entrar, não temer. O que ficou quando acordou.
Nem porque contar, tão nítido, parecendo verdade, viagem. Embora que outra dimensão, época, país, lugar.
Resto da noite, madrugada, café, espirais do cigarro na sala, serpentinas voláteis do carnaval passado.
Abriu a carta que não foi mandada. Leu:

"Que posso eu te contar? Do tempo arrastado na província? Da chuva e do calor?
Vida comum. Cidade comum.
Arrumei a casa, vaso sobre a mesa, flores que a fada colheu. Aquela açucena, uma samambaia. E as rositas vermelhas da porta de entrada.
Uma canção, um incenso: junípero (?), erva-doce & lótus - revelações, abre caminhos e sorte. E é? Sei!
É a terceira caneta que falha na página em branco da agenda do ano passado, 24 de fevereiro. Onde você estava na noite daquele dia?
Se tivesse ido morar em Jardim, morreria, decerto, de tédio, ainda que entre os livros não lidos e os de reler.
Sim, amor, só uma página, destacada de uma agenda velha. Só um dia em branco na vida de uma mullher comum, a geladeira no degelo automático, o forno elétrico inédito sobre o calcário, uma equação esquecida: HCl + CaCO3 = ? - como era mesmo a reação da calcita?
E nós no ar. Na noite noire. Reagentes. Resultantes. Sem saber calcular a massa total. Por ruas perigosas - voltei a te alertar. Esbarro no muro da tua surdez. Minha mão buscando a tua, sempre fugidia.

Não te contei aquele pesadelo. Nem da noite em que acordei assustada. Parecia uma catedral. Fechada. Entrei pela janela. Dentro era sombria. Nem dormi mais nem quis te acordar. Escrevendo agora é que sinto muito, muito sono.
Continuo sem saber muito bem o que fazer. Não encontrei o tapete. Aquele vestido, creio, servirá. Mas, por quanto tempo? Até quando vais ficar?

O futuro, amor, descobri: é só um temor e um querer."

Papel amassado, lance de basquete, cesta no lixeiro verde - destino final de um dia em branco, colorido em tinta azul. Cinzas no tapete.
Quando quase acreditava, vinha a vida lhe avisar.

"a barra do amor é que ele é meio ermo
a barra da morte é que ela não tem meio-termo".

(Meio-termo, Cacaso)