15.12.08

Dentro do meu cansaço




É claro que dentro do meu cansaço não cabe ninguém. Arrumo meu mosaico de ladrilhos do tempo. Pintei ainda há pouco as persianas, de ocre, espremi laranjas, espantei o cão, lambi o pires do gato fujão, renovei a porção de ração do rato que deixa migalhas de pão misturadas ao que ficou dos pelos do gato na grama, às marcas das patas na terra.
A semana mal começou, vem logo o natal natal das crianças, da estrela guia e do peru de fora, que não tem bico, então não fala, aí não ouço, não ouço ele nem o guiné-galinha d’angola e nem pavão, glu, leó, tôfraco, nem ouço o jingle bells a toda altura na casa do vizinho da direita, de direita, melhor dizendo, só pode, o fdp, que me desperta instintos vis, mas aprendi mandamentos - não matarás-roubarás-fornicarás-cobiçarás - aí fecho as portas, as janelas, ligo o rádio alto, bem alto, não resisto e vou até o portão e vejo que o bar fechou, e não posso matá-lo, o vizinho, nem devo, no fundo nem quero, que tenho piedade, infinita piedade, desesperada piedade, dele, dos insetos, lagartixas, sapos, gatos-de-rua, gentes-sós. De barata é que não, corro léguas quando voam, repulsivas, disparo até o armário onde esperam as havaianas, lanço mão do baygon, do detefon, do on disponível, descarrego nelas minha ira, asco, pavor, respiro aliviada até o acesso da tosse alérgica e me refaço. E volto à semana que mal começou, e estando o bar fechado, abro o vinho, bom mas da promoção, que aguardava o fim da montagem do mosaico. Não pensei que o acabaria tão logo, o mosaico. Há que começar outro, urgente, que muitos vinhos não há e o natal natal dista uma semana de agora e preciso fazer coisas, muitas coisas até lá.
Falta zarcão na grade, a ferrugem vai comer tudo, senão. A maresia perto faz dessas coisas. Como faço coisas, muitas coisas, também eu, todo o tempo, o tempo todo, pra evitar a ferrugem, a gordura abdominal, a angústia, o tédio. Faço muito, que não quero pensar muito, não quero sentir nada, nem posso, nem devo, e já nem lembro mais como é. Por tudo isso não tenho e nem quero tempo, e canso. Que dentro do meu cansaço não cabe ninguém.

2 comentários:

sandrofortunato disse...

Tirasse as vírgulas, eu a chamaria Márcia Saramaga.

MgP disse...

Gosto das velhas e boas vírgulas. Mas você é suspeitíssimo, porque amigo e generoso. Ou então é a ironia do velho lobo...
Pelo que seja, agradeço.
bjãozão ;)