8.12.08

As tintas da narrativa



Sentei-me, na ante-sala do salão de beleza, esperando o tempo sem fim do cabelereiro e observei a moça à minha frente.
Pintou de preto as unhas e a manicure quis adivinhar: - cores fortes, pessoas determinadas, né?
Nada respondeu com palavras. Um meio sorriso, um olhar veloz, ambíguo, de assentimento ou discordância. Vai saber.
Hesitou. Contou um pouco, então, se bem que não assim. Em todo caso:

_ Determinação não era a tônica do momento, mas a necessidade primeira, que desde a opção pelo exorcismo da derradeira dor, desde a decisão pelo entorpecimento, tudo ia transcorrendo moroso, sem vontade. Decisão só esboçada, nenhuma determinação. Até o momento em que a última insônia lhe trouxe as respostas. Então quis. Quis muito. Quis com toda a força os sonhos que restavam e o retorno aos projetos adiados. Quis distância, distanciamento, observação, silêncio. Renascimento. Quis o sepultamento de todas as perguntas vãs, das dúvidas caladas, das mágoas silenciosas. Quis libertação. E limpou casa, alma e vida. E desfez-se de tudo o que sobrava. E desprendeu-se de teias, tralhas, supérfluos. E tirou o pó das lembranças boas e guardou-as. Com alguma solenidade. Com muito zelo. Então, leve, pôde voltar a caminhar, com mais Luz, mais Amor, mais Alegria.

No caminho iniciado - percebi -, indiferença aparente, só: o jogo muscular que pratica, com que finge e filtra, interpreta, imita, ao fim denuncia a emoção que escorre, desautorizada, no gesto e no olhar que sobram na distração, no riso que esquece de guardar, na quietude, até, na ausência mesma de reação.

Eu a vi partir. Ouvi sua voz grave e seu silêncio e seus passos firmes e vi suas unhas negras e vi os olhares que a acompanharam, sem os decifrar.
Não se deteve. Seguiu, segredando em olhares, que a distância entre o impossível e o possível é do tamanho do querer. Nada mais.

Não contracenei. Fiquei pensando sobre a sua narrativa, que lembrou-me outra, construída em torno de um enredo banal: a velha seqüência sedução-traição-abandono contrariando as previsões da cartomante, as promessas de nova esperança, presentes do universo, prêmio, merecimento e tal e tal. Desta, havia eu apreciado as cores.

Não me compadeci em nenhum dos casos, confesso. Mais me importava ouvir tais histórias. Muito mais coloridas, instigantes, sedutoras, do que a vida às vezes é capaz de ser. Mesmo quando tecidas a partir de enredos banais.

2 comentários:

Mme. S. disse...

"Mais me importava ouvir tai histórias"... adorei essa revelação. Também penso (e ajo) dessa maneira. Um cheiro, S. ("Emanum", é o que diz seu verificador...

MgP disse...

Obrigada.
Emanemos, então.
Bjins
:)