5.1.09

A cobra, o ano novo, a dor e a cura


Então não conseguia mais andar. A planta do pé tocando o solo irradiava dos dedos à base da coluna vertebral o choque, depois dor, depois enrijecimento, depois espasmo, depois dor, depois choque. Nem padiola, maca, raio x, injeção, nem maravilha curativa, remédio que quando não cura mata, quando não cura a doença mata o sujeito, nem o homem da mala anunciando catuaba composta, erva milagrosa, nem cobra nem jacaré. Minto. Cobra sim, que foi ela a responsável pelo que sucedeu, por tudo, aliás, desde o início dos tempos - rezam as Escrituras.
Era uma beleza, o lugar: beira-mar, beira-rio. Chegando apressada, pacotes de supermercado, carregando, sacos de gelo, pesando, e sssss, lá vinha, ligeira, serpenteando, na porta de entrada - em sua função, claro, serpente que era, de nascença.
Nem se pára, hora dessas, pra ver se é peçonhento ou não o bicho - cabeça triangular ou arredondada, escamas brilhantes e tal -, e assim, reativa, sapecou-lhe em cima o saco mais pesado, o de gelo, imobilizando-a, e no movimento brusco, paralisou-se também, nervo ciático pinçado, talvez, disseram. Dor. À mão chegaram um rodo e uma rede, dessas de limpar piscina, e não soube o que fazer nem com um nem com a outra. Acudiram, então, acorreram, matando o infeliz pequeno réptil a golpes de rodo. O pobre. Uma pena.
Passos lentos, subindo escadas até o quarto, até a varanda, de onde ondas batendo, de onde milhares de estrelas no céu e primeiros fogos de artifício anunciando o ano que nasceria dentro de quatro horas.
Velho vestido branco, tentou driblar a dor e concentrar novas esperanças, desejos, sonhos, resoluções. Vieram os drinques, vodka/suco de laranja, vinho, espumante e cada passo era um martírio.
Romaria até a fogueira, gente, festa, abraços, ano novo, ano velho, luzes dos fogos, risos, mais abraços, ondas lambendo os pés. E fim. Era já outro ano.
Vieram os analgésicos, antiinflamatórios, comprimidos, sublinguais, corticóides... E viria outro dia, que foi pior, e mais um, pior ainda, e no terceiro, finalmente, algum alívio, e o quarto dia, enfim, com a hora de pegar a estrada e voltar para casa, procurar um especialista, tentar a cura para a dor, já melhorada, ainda incômoda, ainda limitante.
O amigo sentenciou: isso aí na coluna é do seu medo de seguir em frente.
Com ou sem medo, seguiria - decisão de ano novo - afastando do caminho o que rasteja, sem que necessário seja sua aniquilação. Que no ano da Força, da abundância, da colheita, mesmo sem saber direito onde se vai chegar, é imperativo prosseguir.
Com ou sem dor, de pé.

"maré cheia
a doença traz a dor e a cura
e semeia
grãos de resplendor
na loucura
"

(Pérolas aos poucos - Zé Miguel Wisnik e Paulo Neves)




Publicado no embrulhandoopeixe, em 10/01/2009.

6 comentários:

sandrofortunato disse...

Nas não-resoluções de Ano Novo, o não fazer aos outros o que... você sabe. Então jogo comentários ao deus-dará, inaugurando, deflorando sem dor, os espaços aqui abertos. Continuemos a semear os grãos de loucura, com resplendor, seja onde for. É... parece que foi assim. Ontem, hoje,...

costa Junior disse...

Achei muito bonito esse texto. Por isso tive vontade de comentar
Sou um simples leitor, mas que admira extremamente que você escreve.

gerson assis disse...

Que belo texto. Diria que sinto uma inveja positiva, se é que existe isso, ao ler cada coisa que vc escreve. Quero mais.

gerson assis disse...

a propósito, quando tiver um tempo, dê uma olhadinha nesse blog:
http://www.sertaocaboclo.blogspot.com/

MgP disse...

Costinha, obrigada.
Gersito, idem. Vi o blog do seu irmão, que, claro, já tá lá na lista.

MgP disse...

e Sandro, claro, tô sempre lá. beijos.