16.7.09

No loteamento do céu

Ainda as notas do samba ecoando na esquina que dobrei, guardei, botei no bolso de trás da calça, com cuidado para não amassar. Braço sobre o ombro de Blaise, fomos caminhando meio trôpegos até chegar à beira do rio, cimo da escadaria cujo primeiro batente varremos com folha de fruta-pão, limpando o resto do cocô dos pombos com nossos jeans puídos.
Ele estava especialmente alegre naquela tarde que se dissipava em minha quietude. Eufórico até. Recitou três ou quatro versos, bebeu cinco ou seis goles, discorreu sobre guerras, amputações, miséria e renascimentos. Blaise era assim mesmo, de uma capacidade inefável de se recompor depois de dilacerado - ou fulminado, como preferia - o que me ensinou um pouco a viver minhas próprias amputações simbólicas.
Perguntou-me, súbito: - Que dizia a música?
Cantarolei, Assis Valente tinindo na memória remota quase intacta: - “minha gente/ era triste, amargurada/inventou a batucada/pra deixar de padecer/salve o prazer, salve o prazer...”

Olhar perdido no afogamento do sol, contei que ali teve vez minha reconciliação com Capeto nos idos de mil novecentos e muito. E que ali fundamos nossa amizade. E que ainda outro dia fiquei triste, tão triste por ele.
Contei que amizade prezo mais que romance. E que mentira me assusta e incomoda. E que não sei de um, um só romance sem mentira.
Sorriu, só, meio-sorriso meia-boca, gravata amarrotada de noites insones, mangas dobradas deixando um braço à mostra.

Quando o sol morreu, voltamos para casa. Ele, com o chapéu cheio de pitangas: as que chorei. Eu, com o embornal cheio de palavras: as que me disse e as que calou.
Despedimo-nos na mesma esquina, que tirei do bolso, desdobrei, recoloquei no lugar.
Mesmo querendo esticar o tempo, havia que voltar, varrer bem varrido o assoalho do juízo, refletir sobre nosso encontro beira-rio, a mentira, a fantasia.
O que ao fim não me deu conclusão alguma, que nem Blaise veio à vila, nem a roda de samba toca Assis Valente, nem todo mundo é filho de Papai Noel.

E a verdade, essa continua morando do outro lado.
Do rio, do espelho.
Talvez em algum barraco da zona norte.
Ou em algum lote, no céu.


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