Ele estava especialmente alegre naquela tarde que se dissipava em minha quietude. Eufórico até. Recitou três ou quatro versos, bebeu cinco ou seis goles, discorreu sobre guerras, amputações, miséria e renascimentos. Blaise era assim mesmo, de uma capacidade inefável de se recompor depois de dilacerado - ou fulminado, como preferia - o que me ensinou um pouco a viver minhas próprias amputações simbólicas.
Perguntou-me, súbito: - Que dizia a música?
Cantarolei, Assis Valente tinindo na memória remota quase intacta: - “minha gente/ era triste, amargurada/inventou a batucada/pra deixar de padecer/salve o prazer, salve o prazer...”
Olhar perdido no afogamento do sol, contei que ali teve vez minha reconciliação com Capeto nos idos de mil novecentos e muito. E que ali fundamos nossa amizade. E que ainda outro dia fiquei triste, tão triste por ele.
Contei que amizade prezo mais que romance. E que mentira me assusta e incomoda. E que não sei de um, um só romance sem mentira.
Sorriu, só, meio-sorriso meia-boca, gravata amarrotada de noites insones, mangas dobradas deixando um braço à mostra.
Quando o sol morreu, voltamos para casa. Ele, com o chapéu cheio de pitangas: as que chorei. Eu, com o embornal cheio de palavras: as que me disse e as que calou.
Despedimo-nos na mesma esquina, que tirei do bolso, desdobrei, recoloquei no lugar.
Mesmo querendo esticar o tempo, havia que voltar, varrer bem varrido o assoalho do juízo, refletir sobre nosso encontro beira-rio, a mentira, a fantasia.
O que ao fim não me deu conclusão alguma, que nem Blaise veio à vila, nem a roda de samba toca Assis Valente, nem todo mundo é filho de Papai Noel.
E a verdade, essa continua morando do outro lado.
Do rio, do espelho.
Talvez em algum barraco da zona norte.
Ou em algum lote, no céu.

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