22.6.09

Mensagem




Não, o carteiro não chegou nem seu nome gritou, do portão. No entanto, escreveu, finalmente, a carta. Já não conseguia escrever há algum tempo, o corpo que habitava, inerte, quase, não fossem os tremores nas mãos.
Procurou os óculos sem aflição. Releu:

"Mesma cadeira, a mesa, a mesma. Mesma pimenta no prato, e não é refresco, no copo rubro de agora. Uma taça, aliás. É outro o dia, outra a companhia de olhos postos sobre a toalha xadrez, verde, vermelha. Outra cena e algum torpor se espalhando pelas extremidades, o suficiente para me dar a calma que preciso para lhe contar de quantas perguntas ainda tinha a fazer. E calei.
Hoje é outro o momento, e eu repito que nada mais volta como era. E você refaz um caminho com outro andar, seguindo a indicação do gato zombeteiro, mordiscando, cá e lá, pedaços de chapéu-de-sol, encolhendo, esticando, cabendo, sobrando.
Penso agora em parar de morrer, senão vou acabar fumando. Não, o que eu queria mesmo dizer era que talvez precise morrer, senão vou acabar parando de fumar. Não sei, estou confusa, mas você entendeu, acho.
Não sei quando comecei a odiar os pombos, essas criaturinhas divinas e insuportáveis que me remetem sempre ao cinza, ao frio, à solidão, à rapinagem oculta nos seus doces arrulhos. Mas eles vêm, destemidos, e dou a eles migalhas do meu pão dormido, então na verdade não deve ser ódio. Talvez ao que representam(?).
Um momento particularmente delicado, por razões que não lhe interessam agora, sem a reprise do acometimento.
Eu uso deliberadamente suas palavras e tenho certeza que você as reconhece quando as vê, arguto que é.
Ainda sobre aquele momento, desfaço o suspense: não havia nada. Era só a vida, o descaminho. A dor do mundo, a dor dos outros. Passou há muito. E chegou de novo e se foi.
Não ria, não, mas eu juro que é o inverno que faz coisas assim. Precisei falar com você sobre isso tudo que é tão tolo e por todo esse tempo. Tive a impressão idiota que só você compreenderia. Mas eu não sabia dizer. Quis escrever. Mas minhas mãos estavam frias. Quis pensar. Pensei melhor e decidi jogar cartas e cometer assassinatos de preciosos segundos, minutos, horas, dias. Quando tudo acabou, escrevi esta carta que você está lendo neste exato momento de nossa inexata vida.
Vou em férias para a terra do sol. Porque descobri que não há ninguém. Absolutamente. Nós somos a nossa própria terra do sol. E dispomos sobre o seu-nosso solo, nuvens e temporais. Essa a nossa expiação. Inferno. E maravilha.
Não preciso mais implodir as tomadas. Venci o vinho.
Não lhe mando um beijo. Antes um abraço, apertado, de corações perto, sem aqueles seus tapinhas de consolação, nas costas, que um dia detestei com todas as forças do meu ser.
Não lhe pergunto nada mais. Nem mais lhe digo até a chegada da primavera.
Mergulho na biblioteca, vou ter coragem para apedrejar os pombos, para assustar os pombos, para espantar os pombos. Uma dessas alternativas, pode apostar.
Colha flores. Desembainhe espadas. Faça amor. Faça guerra.
Santé!"

A chuva parou ao fim da leitura, Vanuza cantando no rádio enorme, quarentão enxuto, estrela da sala-de-estar: "e assim pensando rasguei sua carta e queimei para não sofrer mais".
Sai dessa, Vanuza! - pensou, olhando a carta que não foi mandada sobre a mesa. E sorriu.

---------------------------------------------------------------------------------------

"Hoje é sábado, amanhã é domingo. Não há nada como o tempo para passar..."
(Vinícius de Moraes, O dia da Criação)

Nenhum comentário: