3.6.09

Panfleto



Companheiro,

Nasci com o grave defeito de acreditar
E cri no tempo solar alardeado pelos arautos do amanhã
E fiz a arrumação juntando gente em torno do manifesto
- nosso evangelho depois do fim de tempos cinzentos
Já se vão duas boas décadas ou mais desde então
Malograda a revolução,
Restou no espaço
O vácuo
Sem luz
Ou oxigênio
(em uma serra não longe de onde nasci há um lugar assim
a gruta da Santa onde não rezei, mãos postas em contrição)

Segui crendo na vida No amor No humano No mundo
Tantas vezes fui tola
Tantas ridícula
Tantas patética piegas risível
Umas – disseram – poética até
Muitas me deixei enganar, incontáveis
E dizia: nunca mais
E à frente, seguia crendo
E conclamando a crer outros mais
Até cair no vazio
Este, cri encher de sons e palavras
Escrevi tantas cartas e todas enviei
e se extraviaram e voltaram e encalharam em ilha qualquer de terra inóspita
Onde as respostas?
Não se as tinha
E me afoguei em fontes fermentadas
Destiladas
E ressurgi com mais solidão
Morri de tédio
Medo
Dor
Experimentei o infindo suplício da fênix sem nunca conhecer o repouso do guerreiro
sem capitular
Limpei tudo ao redor
Arrumei a mala e não parti
Perfumei as orelhas, atrás, trancei cabelos, a porcelana japonesa deslocada na austeridade da cabana
Espantei ratos e suprimi sua ração
Varei noites madrugadas auroras pés descalços no espinheiro na plantação ressequida nenhuma flor nenhum fruto no jardim no pomar
Ninguém me adivinhou chegar pelo som dos tamancos
Nem soube dos desertos nem das tempestades
Nem da solidão inflando paredes
Nem da água salgada lavando o chão da sala regando solo estrangeiro limpando alma olhos espelhos
Do amor sem fim precipitado
No mesmo vácuo de outra era

Companheiro,
Parva, atemporal, sigo crendo.
Sem saber dizer o porquê.

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“Nós, gente do povo, sentimos tudo, mas não sabemos nos exprimir; temos vergonha, porque compreendemos, mas não sabemos dizer o que compreendemos. E muitas vezes, por causa desse embaraço, revoltamo-nos contra os nossos pensamentos. A vida bate-nos, tortura-nos de todas as maneiras e feitios, queremos descansar, mas os pensamentos não nos largam.”


(A mãe - Máximo Górki)

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