1.6.09

Uma estrada



Poderia ser o reinício do trabalho tantas vezes interrompido, fios perdidos da meada-matriz, soltos do novelo-pai.
O piche da estrada divide em duas a mata apontando o caminho da casa sem rosto - nem o seu, nem o meu - cornucópia de sons e letras, descontínuos, incongruentes, e eu nada escrevi no diário que na verdade não tenho, pois nem bem sei dos dias nem de traduzi-los, como também não escrevi as cartas que não enviarei esperando se desmancharem no amarelão do tempo, no festim das traças e dos fungos da invernada que se avizinha.
Lamento a ingenuidade repetida e ouço de memória: "não sou eu, é o mundo que é assim". Mundo que eu queria outro, melhor - claro - ainda que à força de conservantes contra a decomposição veloz, voraz.
Cinco passos à frente de onde agora está há um esboço de futuro. Peso do mundo sobre as costas, óculos, tez morena, ouvidos selados, lacre inviolável, alaúde sobre a cabeça, seu olhar distante nos remete às ruas do Marais onde catávamos moedas à sombra do arco-íris, pães por notas musicais, tempo do frio, longínqua felicidade adivinhada pouco antes de acordar.
Na janela, os cortes de estrada avermelham a passagem - barro e capim, saudade agreste, galpões abandonados. Sem saber aonde vamos, refaço o projeto da casa redesenhando os galos-de-campina, a bailarina rodopiante da caixinha de música, os vidros coloridos nas prateleiras, o espelho trincado sobre a penteadeira.
Na janela, não passa boi nem boiada, só o verde fosco do canavial e a moldura plúmbea das chuvas em formação entorpecendo pálpebras.
Não, não é a emenda dos fios partidos, apenas um pedaço de caminho, apenas a descontinuidade de depois da curva, o ponto de chegada desconhecido, o desenlace obscuro, a bola de cristal quebrada e o aviso de interdição na placa sobre a fonte dos desejos: não mais que um dia por vez.
E nossa desobediência.

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Na gelada solidão,
Que tu me dás coração,
Não é vida nem é morte:
É lucidez, desatino,
De ler no próprio destino
sem poder mudar-lhe a sorte


(Maldição; Alfredo Duarte - Armando Vieira Pinto)

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