1.4.09

Temporão






Passa da meia noite e você prega.
Ninguém perto.

Para quem?

Gemidos, sussurros, gritos - que seja - reverberam no deserto.
Só sons morrendo nas rochas:
surdas, imóveis, silenciosas.

Sons, sós.

Como eu.
E você.

Passa da madrugada, você me pede água.

Só uma fonte que secou, e lhe mata de sede.

Uma história de infância, distante: - "não parta a melancia longe dessa fonte.
Que a princesa, dela nascerá: bela, sedenta. Sem água, resseca. Vira pó em um instante".

Passa do meio-dia.
Seu corpo queima no sol escaldante.

As rugas lembram que hoje não é antes.

A via cobra pedágio.

A vida, tributo.

Existir em liberdade – quem dera?
Voltamos às correntes, às masmorras
Aos grilhões, às galés.

(Verto em rimas pobres tudo o que me assombra. Nada nobre, pouco cobre. Nada de poesia, nem de prosa. Arremedo, escombro, sobra. Talvez sobrem muitas sombras.)

Passa da hora do Àngelus.
Esperam por nós e o que não seremos, tutti bambini:

- os que não fomos;

- os que não fizemos.

Passa da hora de fazer silêncio.
O toque de recolher ecoa aqui por dentro.
Recuso-me o discurso do abstêmio.

Meu peito: incêndio.
Minha paz: o vento.

Lembro, penso, sinto, sento.

Escrevo.

Agradeço.

Regozijo-me.

Tudo dói.

Arrebento.

Resisto.
Renasço.
Entorpeço-me.

Se serve de consolo: não durmo ao relento.

Na verdade, passa da hora, muito.

E nada sinto:

invento.

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"Agora, já passa da hora
tá lindo lá fora
larga a minha mão
solta as unhas do meu coração
que ele tá apressado
e desanda a bater desvairado
quando entra o verão
"

(De todas as maneiras, Chico B. H.)

"Campineiro do meu pai
não me cortes os cabelos
minha mãe me penteou
minha madrasta me enterrou
pelos figos da figueira que o pássaro bicou
"

(Tradição oral, autor desconhecido)

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