7.4.09

Sonho de fim de verão




Estávamos na praia, eu e ela, ela e eu. Ela contava então oito, nove anos. E no entanto era hoje.
Ela corria com outras crianças. Na direção contrária.
Eu advertia: não tem mais ninguém lá. Todos estão voltando à casa. A maré está enchendo.
Sentamos no batente. Perguntei: gostavas de mim?
Disse, distante: gosto. Gostava.
Lembras que eu cozinhava para ti?
Lembrava. Desfilou as comidas que eu fazia. E eu já nem lembrava mais.
Entramos na casa. Assistimos o recital. O monólogo. A mulher, lábios grossos, encenava, nas mãos uma criança de colo. Um menino. Moreno. Sujo de barro. De se arrastar pelo chão. Ela lhe ensinava a vida como era.
Amarrou uma de suas mãos a um caibro, a direita. Amarrou um de seus pés a outro, o esquerdo. Ele se debatia, pendendo, sem chorar. Havia carinho no gesto, iniciático. Assim lhe ensinava a mobilidade sem a liberdade. Dizia-lhe coisas, muitas coisas, sobre a espera, as batalhas, a força, o amor.
Ele contracenava. Assistíamos.
Acordei.
Hoje ela se perdeu de mim. Eu me perdi dela. E a amo. Ela, não sei mais. O que esconde atrás da raiva nos seus grandes olhos azuis? Em que gaveta trancou as nossas noites, nossos contos, nossas tardes à beira-mar, nossos jogos de pedrinhas, as roupas de boneca, os bolinhos de chuva?
Em que curva, esquina, encruzilhada, nos dissemos adeus? Em que navio, ônibus, avião, partiu pra não mais voltar?
Em que tempo trará de volta a ternura nos seus grandes olhos azuis?

Os sonhos não trouxeram as respostas.



Clareia manhã, clareia
Abre os teus dedos manhã
E deixa essa casa cheia
Do teu cheiro de romã


(Aurora, Ednardo/Belchior)

3 comentários:

mutum disse...

Tempo...tempo...
Só ele, sem pressa, calmamente, trará o amor e a ternura à estes lindos olhos azuis.
Tenha certeza que nada se perdeu...

MgP disse...

será, naninha?
bjs

costa Junior disse...

Quanto mais leio o que você escreve mais fico abestalhado!. A bela imagem e o bonito texto formam a harmonia perfeita.