4.3.09

Tapete vermelho



Por trás da enorme catedral abandonada, a janela, maior que uma pessoa média, vitrais azuis, quebrados.
Subiu a mureta, esforço impossível que deu certo, passou entre as 'ctites e 'gmites de vidro, sem estalar.
Dentro da ruína a névoa do quase pesadelo. A moça embalava a criança, no colo. A moça que seguiu na frente, deixou cair no meio-fio a pulseira de ouro.
Subir, entrar, não temer. O que ficou quando acordou.
Nem porque contar, tão nítido, parecendo verdade, viagem. Embora que outra dimensão, época, país, lugar.
Resto da noite, madrugada, café, espirais do cigarro na sala, serpentinas voláteis do carnaval passado.
Abriu a carta que não foi mandada. Leu:

"Que posso eu te contar? Do tempo arrastado na província? Da chuva e do calor?
Vida comum. Cidade comum.
Arrumei a casa, vaso sobre a mesa, flores que a fada colheu. Aquela açucena, uma samambaia. E as rositas vermelhas da porta de entrada.
Uma canção, um incenso: junípero (?), erva-doce & lótus - revelações, abre caminhos e sorte. E é? Sei!
É a terceira caneta que falha na página em branco da agenda do ano passado, 24 de fevereiro. Onde você estava na noite daquele dia?
Se tivesse ido morar em Jardim, morreria, decerto, de tédio, ainda que entre os livros não lidos e os de reler.
Sim, amor, só uma página, destacada de uma agenda velha. Só um dia em branco na vida de uma mullher comum, a geladeira no degelo automático, o forno elétrico inédito sobre o calcário, uma equação esquecida: HCl + CaCO3 = ? - como era mesmo a reação da calcita?
E nós no ar. Na noite noire. Reagentes. Resultantes. Sem saber calcular a massa total. Por ruas perigosas - voltei a te alertar. Esbarro no muro da tua surdez. Minha mão buscando a tua, sempre fugidia.

Não te contei aquele pesadelo. Nem da noite em que acordei assustada. Parecia uma catedral. Fechada. Entrei pela janela. Dentro era sombria. Nem dormi mais nem quis te acordar. Escrevendo agora é que sinto muito, muito sono.
Continuo sem saber muito bem o que fazer. Não encontrei o tapete. Aquele vestido, creio, servirá. Mas, por quanto tempo? Até quando vais ficar?

O futuro, amor, descobri: é só um temor e um querer."

Papel amassado, lance de basquete, cesta no lixeiro verde - destino final de um dia em branco, colorido em tinta azul. Cinzas no tapete.
Quando quase acreditava, vinha a vida lhe avisar.

"a barra do amor é que ele é meio ermo
a barra da morte é que ela não tem meio-termo".

(Meio-termo, Cacaso)

Um comentário:

gerson assis disse...

tudo muito perfeito. Concordo até nas crases. Mas, já está na hora de acordar