14.3.09

A fenda

Havia uma brecha no tempo. Várias, aliás. Dos lados, embaixo, em cima. Frestas, fendas, buracos de fechadura. Todas pequeninas. E nelas cabiam muitos, que sempre cabe mais um.

Um minuto, um chamado. Um segundo, um convite. Uma hora, uma retirada.
Um plano de vôo, um plano de fuga, um mapa da mina, uma rota de navegação.

Uma nau, um capitão. Um mar revolto, agitado feito o mar da história.
E içava a vela. E cortava as ondas. E vencia a tempestade.

Uma planície, um cavaleiro. Rocinante à espera. Escudeiros atentos.
E olhava os moinhos. E combatia os gigantes. E cruzava o fosso.

Cada fresta, uma travessia. Um vaso de vinho. Um redemoinho.
E o tempo, elástico, esticava, encolhia.

Havia que conduzir, sim, a duras penas.

Palavras demais, perguntas demais: não te ensinaram o silêncio? Outra pergunta.

Nada pessoal, aliás, tudo é tão impessoal quanto moderno. Quanto passado.
Obsoletos o flerte, o amor, a fé. Em desuso, feito trema.
Que teimo. E uso.
Mas era o tempo – e não o trema - o tema.
Era o que roubei do tempo. ‘Não roubarás’ - pensei no catecismo. Nem havia feito a primeira-comunhão, a confirmação do batismo. Então, invalidava o primeiro ou os mandamentos?
Roubei. Um pouco, pouquinho só. Não me condena em nada. Se sim, o Juiz me absolve: furto famélico – dirá. E se comove. Roubei uns naquinhos de tempo. Se juntar todos nem cabe numa volta inteira do maior ponteiro do relógio. Nem em meia volta.
E entrei por essa fenda do tempo. No tempo de um raio. Intenso. Fugaz. De luz.

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Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo tempo tempo tempo
Num outro nível de vínculo


(Oração ao tempo, Caetano Veloso)

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