26.3.09

Quando a lua mudar de fase

Quando a lua muda de fase o corpo incha, enche de líquido. Pesa. Pende. A loucura é sutil, não de correr doido, na rua; nem de carteirinha; nem de jogar pedra. É quase loucura santa.

Quando a lua muda de fase, resolvo num piscar de olhos, estalar de dedos, rápido como quem rouba, cada equação.

Sonho de novo, acredito, de novo. Amo. De novo. Reinvento a vida. Ignoro o medo, o tempo que voa, a morte iminente - sombra furtiva rondando esperando assombrando, sempre, cada esquina.

Quando a lua muda de fase, viro Gagarin. Sobrevôo a Via Láctea montada no dragão de Jorge. Guardo o macacão de operário, a fantasia de perua. Visto a roupa do carnaval, do São João, do Natal.

Quando a lua muda de fase me encolho sob o lençol. Reúno óculos livros chá verde cartas de amigos canetas papel segredos memórias confissões. Desligo o mundo, a tribo, a aldeia, a rede, o rádio, sem culpa precipito no vaso sanitário aparelho de telefone, endereços, catálogos. Ilha, me refaço.

Na última fase não foi tão grave. Andei léguas a pé. Quando vi era outra cidade.

Quando vi era outro país.

Quando vi estava só.

Quando vi não era ninguém.

Quando vi era triste de morrer.

Quando vi era outra vez feliz.

Não sei o que vem na próxima fase.
Mas quando a lua mudar, dessa, me mudo também.

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"O toque de sonhar sozinho
me leva em qualquer direção
de flauta, remo ou moinho
de passo a passo passo...
"

(Fadas, L. Melodia)

14.3.09

A fenda

Havia uma brecha no tempo. Várias, aliás. Dos lados, embaixo, em cima. Frestas, fendas, buracos de fechadura. Todas pequeninas. E nelas cabiam muitos, que sempre cabe mais um.

Um minuto, um chamado. Um segundo, um convite. Uma hora, uma retirada.
Um plano de vôo, um plano de fuga, um mapa da mina, uma rota de navegação.

Uma nau, um capitão. Um mar revolto, agitado feito o mar da história.
E içava a vela. E cortava as ondas. E vencia a tempestade.

Uma planície, um cavaleiro. Rocinante à espera. Escudeiros atentos.
E olhava os moinhos. E combatia os gigantes. E cruzava o fosso.

Cada fresta, uma travessia. Um vaso de vinho. Um redemoinho.
E o tempo, elástico, esticava, encolhia.

Havia que conduzir, sim, a duras penas.

Palavras demais, perguntas demais: não te ensinaram o silêncio? Outra pergunta.

Nada pessoal, aliás, tudo é tão impessoal quanto moderno. Quanto passado.
Obsoletos o flerte, o amor, a fé. Em desuso, feito trema.
Que teimo. E uso.
Mas era o tempo – e não o trema - o tema.
Era o que roubei do tempo. ‘Não roubarás’ - pensei no catecismo. Nem havia feito a primeira-comunhão, a confirmação do batismo. Então, invalidava o primeiro ou os mandamentos?
Roubei. Um pouco, pouquinho só. Não me condena em nada. Se sim, o Juiz me absolve: furto famélico – dirá. E se comove. Roubei uns naquinhos de tempo. Se juntar todos nem cabe numa volta inteira do maior ponteiro do relógio. Nem em meia volta.
E entrei por essa fenda do tempo. No tempo de um raio. Intenso. Fugaz. De luz.

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Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo tempo tempo tempo
Num outro nível de vínculo


(Oração ao tempo, Caetano Veloso)

12.3.09

Quem não sabe assoviar

Eu vou fazer uma canção de escárnio e maldizer, uma canção de mal-casada, uma canção bordada com fios de urtiga. E jogar na rede de intrigas.

Eu vou fazer uma canção medieval, um canto gregoriano, compor um jogral. E recitar na farra do Juízo Final.

Eu vou fazer um canto de trabalho, uma canção fabril. Com dois metros de seda javanesa, azul e encarnada, empurrar Diana de cima do muro pra brincar o Pastoril.

Eu vou fazer uma marselhesa brasileira, marcha-rancho libertária, um hino nacional. E entoar no próximo carnaval.

Eu vou fazer um canto de sereia, canto minimalista conjurando águas, sonoro haikai. E lançar sobre o fogo do Monte Sinai.

Mais poderia dizer. E não digo.

Se nem mesmo sei assoviar cantigas de amigo.


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Ouvir rock, ver a chuva, beijar uns lábios, deitar com uma ou outra carne na cama e sentir o sexo. [...] Será que o rock, a chuva e o sexo não passam de infância e que só a infância presente existia? Só a infância presente existe! Lembre-se disto: só a infância presente existe!

(Jorge Mautner, Deus da Chuva e da Morte)

Minha canção há de brilhar na noite, no céu de uma cidade do interior.

(Objeto não identificado, Caetano Veloso)

10.3.09

Na ladeira

Subi a ladeira, na costa, ondas despedaçando espumas, depositando, revolvendo na orla sedimentos, partículas de arrecifes, enchendo o ar de respingos, sal, maresia, tarde morta, balão amarelo, plenilúnio de fim de verão, rádio tocando 'a vida é bela, o mundo apodrece'.

Valsa de um tempo sujo, o mundo apodrece calcando poeiras revirando almas, sebosas, penadas, perdidas.

Subi a ladeira brisa molhada no rosto e não me resguardo, não me refaço, não me regenero, não me alimento, não regurgito, não perdôo.

Não perdôo os poucos amigos, não esqueci os poucos inimigos, não li o jornal, não sei do estupro, do apedrejamento, da excomunhão, do Mereto, dos bordéis da rua Augusta, nem canção nem plenilúnio, não me abstenho nem compareço.

Subi a ladeira, tardei, morri, fugi, não me chame, não pretendo ir.

Só daqui vejo a lua cheia, a noite nova, a vida breve, a onda forte, a pressa calma, só aqui não entendo nem preciso entender.



"Saí do palco, fui pra platéia.
Saí do pátio, fui pro porão.
"

(Sérgio Sampaio - Cabine 103)

4.3.09

Tapete vermelho



Por trás da enorme catedral abandonada, a janela, maior que uma pessoa média, vitrais azuis, quebrados.
Subiu a mureta, esforço impossível que deu certo, passou entre as 'ctites e 'gmites de vidro, sem estalar.
Dentro da ruína a névoa do quase pesadelo. A moça embalava a criança, no colo. A moça que seguiu na frente, deixou cair no meio-fio a pulseira de ouro.
Subir, entrar, não temer. O que ficou quando acordou.
Nem porque contar, tão nítido, parecendo verdade, viagem. Embora que outra dimensão, época, país, lugar.
Resto da noite, madrugada, café, espirais do cigarro na sala, serpentinas voláteis do carnaval passado.
Abriu a carta que não foi mandada. Leu:

"Que posso eu te contar? Do tempo arrastado na província? Da chuva e do calor?
Vida comum. Cidade comum.
Arrumei a casa, vaso sobre a mesa, flores que a fada colheu. Aquela açucena, uma samambaia. E as rositas vermelhas da porta de entrada.
Uma canção, um incenso: junípero (?), erva-doce & lótus - revelações, abre caminhos e sorte. E é? Sei!
É a terceira caneta que falha na página em branco da agenda do ano passado, 24 de fevereiro. Onde você estava na noite daquele dia?
Se tivesse ido morar em Jardim, morreria, decerto, de tédio, ainda que entre os livros não lidos e os de reler.
Sim, amor, só uma página, destacada de uma agenda velha. Só um dia em branco na vida de uma mullher comum, a geladeira no degelo automático, o forno elétrico inédito sobre o calcário, uma equação esquecida: HCl + CaCO3 = ? - como era mesmo a reação da calcita?
E nós no ar. Na noite noire. Reagentes. Resultantes. Sem saber calcular a massa total. Por ruas perigosas - voltei a te alertar. Esbarro no muro da tua surdez. Minha mão buscando a tua, sempre fugidia.

Não te contei aquele pesadelo. Nem da noite em que acordei assustada. Parecia uma catedral. Fechada. Entrei pela janela. Dentro era sombria. Nem dormi mais nem quis te acordar. Escrevendo agora é que sinto muito, muito sono.
Continuo sem saber muito bem o que fazer. Não encontrei o tapete. Aquele vestido, creio, servirá. Mas, por quanto tempo? Até quando vais ficar?

O futuro, amor, descobri: é só um temor e um querer."

Papel amassado, lance de basquete, cesta no lixeiro verde - destino final de um dia em branco, colorido em tinta azul. Cinzas no tapete.
Quando quase acreditava, vinha a vida lhe avisar.

"a barra do amor é que ele é meio ermo
a barra da morte é que ela não tem meio-termo".

(Meio-termo, Cacaso)