23.10.10

Sábado



Eu quis compor um samba mais cedo, pra festejar o sábado, a vida, o calor. Procurei pela casa as notas, os acordes debaixo da penteadeira; do toucador, a melodia. Procurei e não achei.
Não tive muito tempo, que a rua do mundo me chamou a trabalhar, então fui descendo a ladeira de terra esburacada, o sol doendo nos óculos de lentes antiUVA, pró-vinho, vendo os mascates nas bicicletas carregadas de bichos de pelúcia gigantes, espelhinhos redondos, flâmulas de times de futebol, panelas de pressão, colchas de veludo, caminhos de mesa, cofrinhos de porco, pinguins de gesso. Parei no caldo de cana e bebi água gelada demais, a garganta ressequida da poeira do calor da soleira do verão apressado do outubro sem fim.

Tinha fome, muita fome, nada além de duas laranjas e cinco moedas, que somei, aproveitando o transtorno, arranjando um sete que justificasse o esforço, a crença, a cabala, o arcano, a bobagem da vez - a água ocupando o espaço da comida, meio litro de estômago preenchido com goles largos e ávidos, nenhuma pausa, respiração, palavra, som, um corpo sem barulho, sem ruídos, um corpo silente ao meio-dia.

Frente à ponte para atravessar, o rio acordava, preguiçoso, cara suja da noite nua, pernas abertas à preamar, órfão de náufragos, garrafas flutuantes, nenhuma mensagem, mapa, bilhete, sinal, tesouro, prelúdio. Silente, o rio, também.

Trocamos olhares desconfiados, rápidos, sem saudação ou festejo, até que chegasse do lado de lá, onde me esperava a carroça - dois cavalos, nenhum cocheiro, um rapazola, camisa rasgada, calção esfiapado, sujas as mãos. Passou-me as rédeas, procurou o embrulho enquanto, não sorriu quando me fui, encomenda no braço, óculos embaçados, aceno ligeiro e só.

Quando voltei, já a tarde descia seus vermelhos sobre o rio, as dores migravam ao longo da coluna, as garças catavam carrapatos pelos lombos dos bois da margem de lá.

Quando cheguei, o sábado se ia, sem festa ou café ou cachaça ou conversa qualquer.

Deitei sobre o toucador o pacote, embrulho, encomenda, que não abri, como não abri os botões da farda, as janelas da sala, os ouvidos ao vento, aos sons da rua.

Deitei sobre o tapete um corpo ausente, pesado, dorido, olhos parados no teto, pensamentos e imagens fervilhando recitais.
E assim ficou, o corpo, até chegar o sono, até morrer o infeliz violino da morena tosca no bar do lado, até, enfim, sem noite, sem samba, até, enfim, o sábado acabar.

-------------------------------------------------------------------------------

4 comentários:

Paulo Jorge Dumaresq disse...

Crônica estupenda.
Gostei do seu espaço e virei mais vezes lhe visitar.
Saudações lirerárias.

MgP disse...

Muito agradecida.
Volte, sim.
Será sempre bem-vindo. :)
abs,

m.

Carlos disse...

Geografia da alma, poesia, cinema... Que texto! Ufa! E não acabou - vai sabadar a semana inteira...

Beijos!

Carito

MgP disse...

Valha, que eu nem sei nem o que dizer, além de obrigada bem muitão!
beijos,

m.