2.8.10

Para o frio




Há muito não falava em sonhos. Apenas andava. Retas. Curvas. Circulos, que voltavam ao ponto primeiro. Acabando onde começava, serpente autofágica, boca no rabo, rabo na boca. Ou anéis, como as cascavéis. Ouroboros. Sem alquimias e pedras filosofais.

Dois séculos antes, o frio não lhe atingia a cintura, enredada em melenas espessas, longas, dourado-cinza, cinza incomum.
Agora entrava pelos pés, percorria a medula, abraçava o pescoço, descia as costelas, espetava o coração. Inútil, o cachecol. Cache-coeur.

Foi durante o frio, o sonho.

O vento voltara. A lua enchera. A cigana regressara.
Pela janela aberta, o morcego não volteou mais a sala. Só o viu já no quarto, em fuga, rasante sob o colchão, a felina no encalço, pega-não-pega, escorraçado, até o portão da frente. Até desaparecer.

Dormiu logo depois. E teve medo. E gritou. E ninguém ouviu. E tentou sentar na cama. O corpo desobediente, oscilava, caía, caía, e gritava mais e mais. Deu-se conta que dormia. Rezou pra Nossa Senhora de Lourdes. Abriu os olhos. Foi despertando devagar, a vista se acostumando às sombras, à escuridão. Silhuetas, raios de luz. Uma asa voando longe. Um gato na janela.

A ameaça. A sentinela. O pavor. O alívio.

No último dia do mês.

Depois de dois séculos, os cabelos se aproximavam novamente da cintura. Os fios cor de cobre. A blusa vermelha, mangas longas, os olhos cansados, os pés cansados, que há muito andava, e só andava. A voz contida, o grito preso.
Daí ter querido falar em sonhos. Quaisquer.

Cortou o silêncio o apito da chaleira.
Contra o frio, o chá quente. O cachecol. Cache-coeur. O gato na janela.
Gatos no telhado.
Contra o frio, a voz liberta.
A lareira acesa.
E o fogo.
E o fogo.

§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§

"Línguas rubras dos amantes
sonhos sempre incadescentes
recomeçam desde instantes
que os julgamos mais ausentes
A recomeçar, recomeçar como as canções e epidemias
a recomeçar como a colheita, como a lua e a covardia
a recomeçar como a paixão
..."
(Caça à raposa; João Bosco - Aldir Blanc)

Nenhum comentário: