5.5.09

Ritual


Um belo dia, não era belo. Um dia aí, qualquer, passado, tinha resolvido queimar as cartas, todas, todas. Cartas de baralho cigano, cartas de tarot. E cartas de amor. Chamas azuis, amarelas, vermelhas, consumindo o papel, queimando as manchas de sangue e perfume.
No dia, cinza porque chuvoso, chegaram os cupins, voando, famintos, infestando a casa. A mãe dizia: formiga quando quer se perder cria asas. Os cupins querem se encontrar, decerto, quando criam as suas. Em usando pedra de amolar, capaz de roerem até madeira de lei, na porta da frente. Pelo sim, pelo não, melhor não esperar.

Meio ao dilúvio, preparou o capote. Enfrentou as águas inclementes que invadiam o planeta até chegar no primeiro banco de areia, 12 km mais tarde, 20 minutos mais à frente, onde viu o canal. Subindo, deteve-se no meio da ponte, medindo a altura do salto. Precipitou-se, o fôlego curto de fumaça, braços e pernas obedecendo, até a margem. E os olhos divisando a luz ao longe, nada mais que neon, imitação barata da aurora sonhada desde o início dos tempos.

Que fôra fazer no pântano? Buscava o quê, além de fugir dos cupins?
Meia volta sobre os calcanhares, sobre a ponte, pelo asfalto, até o posto primeiro, bainhas e mangas arregaçadas.
Até o posto primeiro, de onde viu voarem zunindo pela janela as tralhas devedoras do lixo há três ou mais décadas.
Coisas, trecos, badulaques, deixaram vazios quatro cantos. Partiram as traças e os esqueletos do armário e a ânfora do vinho daquela noite, vinagre do amanhã, no mesmo arremesso.

Lustrou o pinho do rés do chão. Verteu na banheira sueca essência de lavanda. Dispôs na sala de banho os frascos e incensários, flor de bergamota e jasmim.

Pôs a mesa. Vidros coloridos, licores, chocolate, amêndoa, hortelã, framboesa, amora, groselha, ananás. Bananas, goiabas, carambolas, ciriguelas, mangabas e cajus. Os romances clássicos, os regionais. Calados, sobre o criado, mudo também.

Na vitrola, os címbalos e a rabeca.

Preparou o banquete sob a lua crescente, meio às mariposas, media-luz, meio-medo, meia-alegria.
Na rocha sob o frontão.
E convocou as outras para o Sabá.

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨


"Um lugar deve existir
Uma espécie de bazar
Onde os sonhos extraviados
Vão parar
Entre escadas que fogem dos pés
E relógios que rodam pra trás"


(A moça do sonho; Chico/Edu Lobo)

Nenhum comentário: