21.10.09

as tripas e o coração



Voltei para casa porque precisava dizer, que há muito estava muda. Sofri uma intervenção cirúrgica. Um belo dia amanheceu, bocejei, e quando dei por mim, me havia entrado na boca um alicate, que de um sopapo me extraiu as tripas pela mesma boca - a de onde sai o mal.
Ardia-me a garganta, um pouco, e só. O fato é que por dentro, abaixo do estômago, estava vazia. Nada mais podia digerir dali por diante. Nem sentir, que nesse arranque, saiu-me junto o coração. Este, já de antes – e a bem da sobrevivência – devidamente convertido em tripas.
O vazio perdurou, e veio a consciência, da perda, e o luto, e a dor, ou e a dor, e o luto - nem sei que ordem usar.
Durante o luto, perdi a voz.

Andando na rua me veio à lembrança uma história:

Era para ser um encontro, leve e casual.
Era para ser uma dança, uma dança apenas. E no bailado, rodopiaram tanto que perderam o eixo. A direção. E o ritmo, tornado veloz, veloz. E entraram em órbita. E nesse rodopio a terra foi ficando longe, longe, um ponto azul, até sumir de vista. E seguiram rodando no espaço, feito pião, cruzando constelações, objetos luminosos, passando ao largo dos buracos negros. E foram muitos. E foram um.
Até que um asteróide os desviou da órbita e regressaram à terra, e se esborracharam, quase, no impacto, de encontro ao solo outra vez.
Eram dois e vasculhavam o chão, catando pedaços de si. Eram dois, e meio recompostos, voltaram ao baile. E dançaram outra dança, e mais e mais danças, em rodopio lento e uniforme. Não leve. Ou casual.
Eram dois e embora juntos, não se encontrariam mais.

Com essa lembrança, a voz me voltou. Assim, sem aviso prévio, sem se anunciar. Chegou e pronto, me vi tagarela, em frente à igreja, no banco da praça, meio aos taxistas e desocupados da hora.
Ainda um vazio, ainda a procura pelas tripas, pelo coração.

Quis vir imediatamente pra casa - precisava dizer.
Que dizer ajuda a esquecer. E esquecer, a reencontrar.

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[...]já que gosto tanto de ler, eu mesmo me arrisco a escrever livros irrelevantes que ninguém quer ler. Mas continuo fazendo deste ofício o motivo de minha existência. Porque escrever é como amar[...]
(Carlos de Souza, aqui)

6 comentários:

analuiza disse...

olá, Márcia vc é Márcia se vira nos trinta... rs. Belo e fatal quando a voz cala e o seu texto vocifera. Abraçitos.

MgP disse...

Valeu, Ana! Quando o jeito é se virar, vamos nós, né não?
;)
Obrigada, sinta-se em casa.
bjão,
m.

Mme. S. disse...

a pessoa além de escrever lindo, ainda bota carlão no meio. É tudo de bom mesmo. Um cheiro minha flor. S.

MgP disse...

kkkkkkkkkkkkkkk
mulé, tu num inziste não, visse??
beijo, Sheylinha.

Unknown disse...

desesperadamente belo!

Xêrus

MgP disse...

eita, Fabi, assim você me emociona...
saudade de ler seus poemas.
xerão,

m.