12.4.10

Homo infimus




Madrugadinha, cheiro de café, portas e janelas abertas, pintas vermelhas pelos dedos das mãos, aceno em adeus às muriçocas saciadas.
Penso em passar primeiramente na botica, última tentativa antes de proclamar indeléveis as manchas na planta dos pés, que nenhum esfregão detergente sabão saponáceo alvejante conseguiu remover - conseqüências das menos nefastas da peregrinação, longa, no pântano.

(Direi à loirinha, a gordinha: dois dias depois me lembrei do nome - Thompson. Direi também o que desde o início suspeitava: não me trairia, a memória.)

Olhando as fotos de Roldão e Sebastien, agradeço a eles o retorno do sono, mesmo que leve e descontínuo. O discernimento – gracias, my self – volta despacito. Os anjos circundam o entorno, desconfiados mas intimamente satisfeitos com a debandada das almas sebosas.

Meus cabelos cresceram nesse meio tempo, o da peregrinação. Deixei-os em paz, ao abrigo de tesouras e Dalilas.
A salvo da areia movediça, voltei a acordar cedo, entoando o hino de adeus ao pântano, às armas, aos paraísos artificiais - sem culpas ou saudade.
O corpo agradeceu. A mens insana se refez.

Penso em anteontem. Na mesa farta em que comi e comi e comi, camarões, tapiocas, cevadas, leveduras, ubaias, catolés.
Estava assim, nutrida, serena, contemplativa, quando choveu.
Não disse dessa água não beberei e aparei na boca umas gotas da chuva antes que alcançasse o chão enterrando ossos esquecidos meio à mata.
Permiti que lavasse meus cabelos e alma e pés manchados. Esvaziei então o embornal e pisei, descalça, o solo molhado, chakra aberto à cura, que a terra muito sabe e a muito transforma: carne, ossos, esterco. E flor.



Agora, sorvo o café devagar, quase refeita.
Repenso a visita ao boticário e desisto: não venderá, é certo, frascos de tempo.
Desnecessário, também, o repelente: não voltarão, as muriçocas.
Nem os morcegos.
E nem mais vampiro algum.

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"[...]Fruto injustificável dentre os frutos,
Montão de estercorária argila preta,
Excrescência de terra singular.
Deixa a tua alegria aos seres brutos,
Porque, na superfície do planeta,
Tu só tens um direito: — o de chorar!
"
(Homo Infimus; Augusto dos Anjos)

paisagem incidental: Urca do Tubarão

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6 comentários:

analuiza disse...

Olá, sempre admirando este ar rarefeito, a imprecisão, os dormentes dos trens que sinto ao ler os textos. Belos e insodavéis. Boa tarde . Abraços

MgP disse...

rs
obrigada, ana.
bjão,

m.

Mme. S. disse...

também tenho deixado meus cabelos crescerem e os mantido longe de Dalilas. se você achar uma botica onde venda frascos de tempo, encomenda uns pra mim também tá?

seu texto ta lindo de a gente ficar lendo e sorvendo a essência até perder de vista.

mil afes pra tu, mulher: afff!

MgP disse...

ô comentário bom pra alma!!!
obrigada, fulÔ. se encontrar, compro o lote todo e a gente divide.
bjos,

Mme. S. disse...

fiz o bolinho de café. acho que ficou legal viu (estou respondendo ao seu comments no facebook - risos) e todo o resto do meu dia 17 foi bom demais da conta...

ei, eu to se lembrando do nosso acordo viu? amanhã trabalho normalmente... suspiro.

mas ainda tem quinta e sexta né? te ligo viu?
cheiro, S.

MgP disse...

quinta é óoootimo!!!
bora?
aguardo, viu?
cheiro,

m.