8.9.09

Ano



Quando voltou, tudo estava fora do lugar. Era como se a vazão do açude tivesse deixado à mostra a casa submersa. Ruína e sedimento.
Mas não, não passou água por lá, não passou boi nem boiada, nem manada de elefantes. E já não falava só há anos, trinta, mais. Então o que via estava lá. Nada de armadilhas da mente.
Quando voltou, a cadeira estava sobre a mesa, pernas para cima, como ficavam as cadeiras nos dias de faxina. Esfregão e cera Cardeal.
Descida, acomodou um corpo amorfo, entre cansado e ausente. Um corpo impactado, sobrevivente a um mínimo de 7 graus na escala Richter. E vivo e absorto e incrédulo.
Quando voltou, era o ano novo. O ano novo que começava do meio para o fim, mês nove, ano nove, ano novo.
Conjunção de baboseiras astrais não de todo inúteis - disseram. Forma de poesia para enfeitar o caminho.
Quando voltou já não era mais a mesma pessoa. Não havia um rio, não havia o homem que se banhava no rio, nem mais dialética, nem mais princípios fundamentais, as páginas emboloradas no baú de couro.
Quando voltou não se importava com os adornos, nenhum louro da vitória, nenhuma flor de laranjeira, nenhuma grinalda de hera. Um ser nu. De nudez terrificante, pois também sem pele.
Pele, couro, casca, couraça, como decidir de que se vestir dali em diante?
Menos mal haverem tantas opções.
Para o ano, pele mesmo, que o mais podia espinhar sobre os ossos, nervos, veias. Para o ano, outra pele, e melhor escolher direito. Bem escolhido. Uma bem curtida, resistente a sol e chuva. Menos maciez e mais dureza. Uns cinco de dureza, mais ou menos, noutra escala, a de Mohs. Parênteses para a escala de Mohs, que finda no diamante, de dureza dez. E no entanto, é alótropo do grafite, mole, por sua vez.
Assim queria a nova pele para o novo ano. Mesma composição, outra dureza. Pra abrigar dificultando o caminho da dor que vem de fora, já familiar a de dentro.
Quando voltou estavam mortos os insetos, perfilados no solo entre as ilusões também inertes.
Quando voltou pensou em desistir mas fez planos.
Uma pele nova, todo o necessário para outro plantio, outra colheita, outra edificação.

Sobre a rocha do alicerce deixou se perder a mirada na direção do mar.

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3 comentários:

Moacy Cirne disse...

Um texto seguro.
Com sua carga de imprevisibilidade.
Com sua particular beleza
(quase agreste).

Um abraço.

MgP disse...

Moacy,

Agradeço o seu olhar também particular,
que deixa essa 'casa' em festa,
feito chuva no Seridó.

abração.

costa Junior disse...

E bom ler, melhor ter o que ler, mais ainda seus textos que vêm sempre num propósito de reflexão. A imaginação é a mais pura verdade que temos, então devemos sempre usá-la.