20.9.09
O recorrente, a casa, o furacão
Tomei decisões que já vinham maturando. Havia vendido os cavalos, o que rendeu um bom dinheiro, e fui morar no sítio. Lá ergui a casa. Madeira e tijolos. Resistente a lobos e temporais e cupins e ao calor, à languidez aportada pelos sóis de janeiro, à inércia dos invernos.
Nessa morada fiz meu templo.
Nela vivi, sonhei, dormi, trabalhei, o que é muito igual.
Igual não foi a vida que nela construí a cada dia.
Plantei um jardim de acácias, begônias, gerânios, jasmins, sempre-vivas. Sem amores-perfeitos, que não encontrei suas sementes nem mudas. As samambaias emolduravam a varanda - as samambaias são particularmente sensíveis às energias do ambiente e manifestam isso na posição de suas folhas, ora caídas, ora vivazes. São o termômetro do jardim. Por isso as quis lá.
Cultivava por paixão.
Havia árvores no pomar, generosas em sombra, e frutos, que repartia a cada safra, tantos eram.
Na horta, manjericão. Alecrim. Hortelã. Verduras, especiarias, pimentas, temperos para a grande mesa de madeira, a de cajueiro bravo que conservei por mais de dez anos. Nela, histórias, encerradas em seus sulcos. E a alquimia e o produto do fogo e da brasa. Assados. Cozidos. Poções. Para o estômago. Para o coração. Do forno. Do laboratório.
Continuava escrevendo. E assim, revivendo, projetando, elaborando, narrando, compreendendo, resolvendo. Mas só às vezes. Noutras, amealhava dúvidas. E reinventava a vida em caneta e papel.
Plantar, cozinhar e escrever era o que mais fazia na casa de tijolos e madeira. Lia livros, estudava línguas, escutava música, sim, isso também, na maior parte do tempo livre.
Na lua cheia, a dança do vento, o vinho tinto, os olhos úmidos, os coqueirais.
Não me sentia só, que na casa havia gatos, cachorros e amigos em visita.
Foi muito tempo. Foi pouco tempo. Um ano assim.
Um dia, um furacão varreu o sítio, e não bastasse tirar tudo do chão, levou tudo embora. Não ficaram sequer vestígios.
O vento batendo a janela contra a parede me fez acordar desse sonho tão longo que parecia ter consumido um ano de uma vida.
Anotei o sonho, por conselho do analista. Na sessão seguinte, esqueci o papel. Na outra também.
O tempo foi passando, abandonei a análise.
Esqueci depois a anotação, que jogada na gaveta, continuou dormindo seu sono de celulose. Amarelecendo de fungos. Roída por traças. Encerrada no escuro. Como o sonho. Como a casa. Até sempre. Até nunca mais.
---------------------------------------------------------------------------------------
"...la mato y aparece una mayor
con mucho más infierno en digestión"
(Sueño con serpientes; Silvio Rodriguez)
8.9.09
Ano
Quando voltou, tudo estava fora do lugar. Era como se a vazão do açude tivesse deixado à mostra a casa submersa. Ruína e sedimento.
Mas não, não passou água por lá, não passou boi nem boiada, nem manada de elefantes. E já não falava só há anos, trinta, mais. Então o que via estava lá. Nada de armadilhas da mente.
Quando voltou, a cadeira estava sobre a mesa, pernas para cima, como ficavam as cadeiras nos dias de faxina. Esfregão e cera Cardeal.
Descida, acomodou um corpo amorfo, entre cansado e ausente. Um corpo impactado, sobrevivente a um mínimo de 7 graus na escala Richter. E vivo e absorto e incrédulo.
Quando voltou, era o ano novo. O ano novo que começava do meio para o fim, mês nove, ano nove, ano novo.
Conjunção de baboseiras astrais não de todo inúteis - disseram. Forma de poesia para enfeitar o caminho.
Quando voltou já não era mais a mesma pessoa. Não havia um rio, não havia o homem que se banhava no rio, nem mais dialética, nem mais princípios fundamentais, as páginas emboloradas no baú de couro.
Quando voltou não se importava com os adornos, nenhum louro da vitória, nenhuma flor de laranjeira, nenhuma grinalda de hera. Um ser nu. De nudez terrificante, pois também sem pele.
Pele, couro, casca, couraça, como decidir de que se vestir dali em diante?
Menos mal haverem tantas opções.
Para o ano, pele mesmo, que o mais podia espinhar sobre os ossos, nervos, veias. Para o ano, outra pele, e melhor escolher direito. Bem escolhido. Uma bem curtida, resistente a sol e chuva. Menos maciez e mais dureza. Uns cinco de dureza, mais ou menos, noutra escala, a de Mohs. Parênteses para a escala de Mohs, que finda no diamante, de dureza dez. E no entanto, é alótropo do grafite, mole, por sua vez.
Assim queria a nova pele para o novo ano. Mesma composição, outra dureza. Pra abrigar dificultando o caminho da dor que vem de fora, já familiar a de dentro.
Quando voltou estavam mortos os insetos, perfilados no solo entre as ilusões também inertes.
Quando voltou pensou em desistir mas fez planos.
Uma pele nova, todo o necessário para outro plantio, outra colheita, outra edificação.
Sobre a rocha do alicerce deixou se perder a mirada na direção do mar.
------------------------------------------------------------------------------------------
1.9.09
Cafard
Há insetos mortos no chão. Nem ouso dizer quais. A mim repugna pensar no nome. Nome que é também tristeza.
Invadem os sonhos e espalham o terror. Está assim a casa, preciso dizer. Baratas – já disse. Tristeza.
Se pudesse, bania ambas. Do mundo, dos dicionários, das pessoas.
O veneno nunca foi suficiente, e elas voltam.
No silêncio. No escuro. No banheiro. No ruído da noite. Na calada da madrugada.
Limpo tudo, tudo, com minúcia, detergente, bactericida, desinfetante. Nada.
Foi-se um mês. Veio outro. Foi-se um amor. Veio outro.
Os meses sempre vão. O amor sempre volta. Diferente. Igual.
Quando passa, chega o cafard.
Avoir le cafard – expressão apropriada. Literalmente, ter barata. Masculino, singular: barato.
Ter barata. Ter tristeza. Ter insetos.
Em casa. Nos sonhos. Literalmente. Simbolicamente.
Historietas baratas, apenas. Dramalhões vendidos a R$ 2,50 no paralelo. Na porta do banco.
Caro é o veneno. E pouco. Como sempre, insuficiente.
Quando entrar setembro é somente uma canção. Mas entrou setembro. E em setembro vai ter sol. Gatos caçadores de insetos. Flores. Alegria. Primavera. E – almejo - bastante inseticida.
Assinar:
Postagens (Atom)